sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

FELIZ 2017!!!! SÃO OS VOTOS DO OBIAH




 Quatro pontos tem minha religião
Anamari Souza


Quatro pontos tem a minha religião, faço deles a minha filosofia e faço deles a minha ação, viva, creia, ame e faça, essa também é minha oração, viva sua filosia, ame a sua arte, creia na sua religião e faça a sua parte, mas não use sua religião pra tentar reprimir o outro, somos sete bilhões de mentes no mundo e querer que todo mundo creia na mesma coisa é no mínimo papo de louco. Eu respeito todos que tem fé, eu respeito todos que não há tem, eu respeito que crê em um Deus, eu respeito que não crê em ninguém, eu gosto de que tem fé no verso, eu gosto de quem tem fé em si mesmo, eu gosto de quem tem fé no universo, e eu gosto dos que anda a esmo, um abraço pra quem é da ciência, um abraço pra quem é de Deus, um abraço pra quem é da arte, e um abraço pra quem é ateu, axé pra quem é de axé, amém pra quem é de amém, blessed pra quem é de magia, e amor pra quem é do bem, intolerância religiosa é a própria contradição, religião vem do latim religare que significa união, então pare de dividir o mundo entre os que vão e os que não vão para o paraíso, o nosso mundo tá doente em tudo enquanto nos perdemos tempo brigando por isso, ao invés de dividir as religiões entre as que são do mal e as que são do bem, que tal botar sua ideologia no bolso e ajudar aquele moço que de frio morre na rua desamparado e sem ninguém, os grandes mestres já disseram que precisamos de união, então porque não fazer do respeito também uma religião.
Com o nosso abraço obiahno: Ana Elizabete, Bruno Carneiro, Karla Castanheira, Pedro Augusto, Paulo Ricardo, Nunes Xavier, Lucimar França, Juan Chacón, Hildomar Lima, Amanda Moreira, Nathália Sousa, Ludmila Almeida, Sandra Daniel, Luna Gomes, Denise Alves, Fabiana Cristina. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A decolonização do pensamento passa pela decolonização epistemológica que só pode ser construída pela educação escolar


Há mais de quatro décadas que intelectuais latino-americanos/as defendem a urgente revolução epistemológica para promover a decolonização do pensamento. Essa revolução está sendo preparada e tentada, mas, da mesma forma, está sendo também fortemente coibida. Um dos principais entraves encontrados é a robotização do pensamento, massificada pela mídia. A formação social de opinião é uma luta desigual e injusta, em que a escola, com professores/as, com suas imagens desgastadas e desqualificadas socialmente, digladia com a mídia, com seus mitos e celebridades, idolatrados socialmente. É evidente que vence a robotização, as ideias e opiniões programadas.
Para ilustrar, eu cito o fato de as pessoas, muitas delas instruídas, ou pelo menos escolarizadas, repetirem que a Hillary Clinton não pode ser eleita presidente dos EUA, que os EUA não merecem essa presidente, afinal “aqueles seus e-mails...”, e o argumento não passa disso. Se questionadas sobre o teor ou a gravidade do teor de tais e-mails, nada ou muito pouco sabem dizer (eu poderia listar inúmeros exemplos exatamente iguais, inclusive sobre a situação política brasileira, mas é dispensável). Essas pessoas são meramente seres robotizados, reproduzindo, automatizadamente uma programação midiática. Essa é a situação social, mas o mesmo tipo de reprodução, considerada, claro, mais sofisticada, ocorre também na academia. A única diferença, nesse caso, entre a mídia e a academia, segundo Edgar Morin, em Introdução ao pensamento complexo, é que [e]nquanto os mídias produzem a baixa cretinização, a Universidade produz a alta cretinização (MORIN, 2005, p. 12).
Nas universidades, os templos sagrados da construção do conhecimento científico, também são programados seres robotizados por outros seres robotizados, com um agravante: nas universidades, há a autorização e a legitimação da ciência. A robotização universitária é científica, é teórica, tem rigor metodológico, ou seja, está enquadrada. Por isso, nas universidades, os/as profissionais, estão autorizados/as a formar e a discursivizar uma base teórica capaz de transformar a educação básica para, assim, transformar a sociedade.
A triste constatação é que, devido à colonialidade epistemológica, sabemos que nas universidades, a maioria dos/as profissionais não é capaz de transformar nem mesmo seu próprio olhar, sua própria visão de mundo; não é capaz sequer de questionar sua epistemologia eurocentrada. Então, como poderão esses/as profissionais transformar a sociedade? A grande maioria dos/as profissionais universitários/as é incapaz de se abrir e, pelo menos, de tentar ver os fatos de forma diferente do que ordenam as teorias e os/as teóricos/as que moldam seus pensamentos. Eles/Elas são seres incapazes de se criticarem a partir de outras formas de ver/ler o mundo. A grande maioria ainda sequer sabe que existe Filosofia fora da Europa, conforme critica Dussel:
Bueno, uno ha estado entregado a este mundo de la filosofía desde los quince años de edad y ve la complejidad de este lenguaje de lenguajes, este metalenguaje muy complejo, que es una cierta visión orgánica, argumentada, histórica de la realidad. Es lo que va detrás de siglos, del pensamiento de Platón en Grecia, de Confucio en China o del Upanishad en la India. Y lo que estamos descubriendo es un pensamiento crítico que en América Latina comenzó hace cuarenta años. Cuando planteamos una filosofía latinoamericana de liberación se le quiso dar un sentido anecdótico. Lo profesores en Estados Unidos y Europa lo veían como el producto de una incultura, no de una cultura latinoamericana. Teníamos que golpear las puertas de las universidades, y nos rechazaban, no nos permitían ser profesores. Ahora (esta doctrina) ha cobrado una fuerza y el pensamiento crítico debe dar un horizonte de largo plazo, pues una revolución que no llega a una descolonización del pensamiento, sigue siendo colonial. Ni la izquierda esta vacunada de seguir siendo colonial. Hasta los sectores más vanguardistas, entre comillas, porque son dogmáticos.
La tarea es difícil, pero ya la empezamos. Lo que debemos es tomar conciencia de cosas que estamos elaborando, que no dependen de EEUU o Europa, es algo nuestro porque partimos de una realidad distinta, hemos aprendido a pensar y ahora tenemos que ser responsables y hacer cambios mucho más profundos. Debemos tomar conciencia de que tenemos en la cabeza, en el fondo, una interpretación eurocéntrica de todo, tan profunda que cuando uno da ciertos ejemplos, la gente se espanta porque cómo es posible que yo viera las cosas de un modo tan unilateral, a la europea, negándome a mí mismo y justificando la dominación que sufría. Debemos entender que el último nivel de la dominación, y al mismo tiempo de la transformación histórica, es una cierta visión del mundo.

A única preocupação segura desses/as intelectuais é com a manutenção da forma, das regras e da disciplina (obediência). Sim, pois fora das caixinhas do mais do mesmo não conseguem entender, logo, não sabem o que é e não sabem o que fazer. Pessoas que não sabem pensar, tornam-se escravas das regras e das normas. Por isso, se o/a locutor/a (os/as pares, os/as estudantes) não reproduzir os/as autores/as consagrados/as, portanto, conhecidos/as, o cânone, será severamente penalizado/a por seus/suas interlocutores/as. Enfim, a ciência é o culto à “inteligência cega” (Morin).

Por tudo isso, é urgente a decolonização do pensamento, insisto. Dussel, considerando os processos e regimes capitalistas, econômicos, e não somente a dominação política e administrativa, defende que precisamos ainda nos “descolonizar”, que ainda estamos sob a colonização. Conseguimos a independência, não somos colônia mais, nem de Espanha nem de Portugal, só para ficar nas ex colônias luso-espanholas. Entretanto, somente mudamos de colonizador. Passamos para a colonização da Inglaterra e depois, até o momento, para a colonização dos EUA:

Y a eso hoy le hemos llamado descolonización epistemológica. Epistéme significa ciencia, por lo que sería una descolonización filosófica, científica y tecnológica. Tenemos que ver que nuestro mundo latinoamericano, el que tenemos por delante, es colonial. No debemos seguir creyendo que ya en 1810 o 1820 nos liberamos de España y pasamos a ser independientes, pues caímos en manos de Inglaterra y EEUU, y por eso, como lo habían dicho Mariátegui y Martí, nos toca la segunda emancipación. Estamos en una situación colonial agobiante, pero mucho más sutil que antes y mucho más extractiva de nuestras riquezas. Los españoles nos robaron pequeñas cosas. Ahora nos roban hasta el alma. La dominación no es que haya un soldado en un destacamento español a cientos de kilómetros, sino que se metan en nuestras camas con la televisión y la propaganda. Por ejemplo, la oposición a esta Revolución Bolivariana es no solo de un conservadurismo económico, político, burgués, liberal: es histórica, cultural, y hasta espiritualmente y cristianamente colonial, no saben pensar lo nuestro, desprecian lo nuestro. Y el mismo pueblo a veces, tal es la influencia de la educación, los medios de comunicación, la televisión, llega a despreciarse a sí mismo y anhela salir. No podrá hacerlo, tendrá que aprender a revalorizar lo propio y a partir de allí construir un proyecto de felicidad.

Em outra vertente política, e é essa a que sigo, somos, nas américas, países independentes, política, administrativa e economicamente. Todavia, não temos independência epistemológica, o que nos mantém presos/as a valores e princípios da colonização: isso é a colonialidade. A colonialidade se mantém na constituição do que e como somos – colonialidade do ser; no que e como pensamos – colonialidade do pensamento; na nossa visão de mundo, em como significamos, interpretamos e representamos o mundo – colonialidade epistêmica e colonialidade da linguagem. Essas colonialidades não são fragmentadas, são sempre interseccionadas. Estão na base de nossas (des)obediências diante da ordem do mundo. A colonialidade epistêmica é ainda a certeza e a manutenção dos modelos científicos eurocêntricos na construção do conhecimento (matrizes, currículos, projetos e tarefas escolares, teorias e metodologias etc). 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O abuso de poder do oprimido emana da opressão

sobre o Grande ato contra a reforma do ensino médio e contra a Pec 241 em Goiânia no dia 18 de outubro
Foto de Vitor Hugo (https://www.facebook.com/events/571563116377750/576050229262372/?notif_t=admin_plan_mall_activity&notif_id=1476804596264315)

A mímica surge como objeto de representação de uma diferença que é ela
mesma um processo de recusa. A mímica é assim o signo de uma articulação
dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina que se “apropria” do Outro ao vislumbrar o poder. (BHABHA, 1998: 130)

Cada vez que vejo a atuação da polícia militar de Goiás sobre a população que ela deveria defender me sinto preocupada com o papel da educação pública. Foi assim que me senti ontem. Sim, participei do Grande Ato contra a reforma do ensino médio e contra a PEC 241, que aconteceu em Goiânia nesse 18 de outubro. Fui por mim, por minha filha, que não perde um ato político desde 2013, e fui pel@s estudantes que estão em luta política e corporal contra os desmandos do governo há tempos. Era um ato pacífico, organizado, politicamente intenso e assertivo. A mensagem estava dada, explicitamente. E eu lá ao lado de colegas da UFG e da educação básica. Ao longo do trajeto, havia muitas viaturas da polícia e um helicóptero sobrevoava o cortejo (rsrsrs). Por terra, a pé, éramos acompanhad@s pela intimidatória polícia, todos com cara de poucos amigos. Havia uma policial, com ar de indiferença. As jovens estudantes, em frente à Faculdade de Direito, disseram: "vamos atravessar na faixa de pedestres, pra fazer direitinho", e foram, fazer como manda a regra. O policial, quando viu a faixa cheia de estudante, apitou, chamando os carros para a travessia, desrespeitando a regra, mostrando que a prioridade não é o pedestre nem é a vida humana. Em tempo de opressão, não basta cumprir a regra nem fazer "tudo direitinho". O dominado deseja subjugar seu semelhante para se sentir superior. É um tipo de exercício de poder. Em situações de crise, em que o poder constituído é ameaçado, aumenta a necessidade de demonstração de força, porque "O Homem, que, nesta terra miserável/ Mora, entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera" (Augusto dos Anjos). É a “paranoia do poder colonial” (BHABHA, 1998), que sustentou a ditadura militar por vinte anos e que, agora, após mais de trinta anos, está sendo fortemente revitalizada no governo federal ilegítimo, exatamente por sua ilegitimidade, que o torna frágil e inseguro. Essa paranoia reverbera em Goiás como a paranoia do poder do coronelismo. O coronel goiano reproduz a imitação de si para intimidar o dominado e o manter no seu devido lugar e, assim, evitar que ele ameace o poder. Foi isso que vi no Grande Ato. Para ilustrar, uso como metáfora, a saga Anjos da noite, que conta a história da guerra entre os vampiros e os lobisomens (lycans).  Anjos da Noite: A Rebelião, lançada em 2009, sob a direção de Patrick Tatopoulos, tem participação especial de Beckinsale e Michael Sheen e Bill Nighy como os protagonistas. A Rebelião é um dos mais interessantes filmes da saga, porque os lycans se revoltam contra os vampiros, seus algozes, e os vencem. O que salva os lycans, permitindo que eles reajam e vençam seus algozes, é que, sendo metade homens e metade animais (lobos), eles são parcialmente humanos, e sua humanidade permite que, mesmo na opressão e na subjugação, eles mantenham sua capacidade de pensar e de sentir, portanto, sua capacidade de agir e de se revoltar. Esta é a chave para o entendimento do que disse Fanon sobre a relação entre os colonizados e os colonizadores, que uso para interpretar o comportamento dos policiais militares de Goiás, para além da mímica de Lacan e Bhabha. Os policiais são os lycans e imitam os vampiros, seus algozes: agridem, batem, açoitam... principalmente, aquel@s que estão desgarrad@s do bando. Esse comportamento dos policiais, diferentemente dos lycans, é uma evidência explícita de medo. São covardes. Os coronéis têm medo de que seus potenciais subjugados consigam ocupar os seus lugares e para evitar que isso aconteça, dão demonstrações cruéis de seu mandonismo. Os coronéis, os ditadores, da mesma forma que os colonizadores, vivem sob ameaça, sob a sombra e o medo do subjugado. Sua preocupação é treinar e controlar lycans para guardar seu lugar e manter seu domínio. Mas eles sabem que lycans são também homens, pensam e sentem. Seu lugar não está seguro, seu domínio nunca está mantido. O coronel tem medo e faz do seu medo movimento de ataque. Os lycans imitam o coronel e também têm medo, um medo duplo: medo do coronel, seu algoz, e medo dos subjugados, seu libertador. Os lycans imitam o coronel, fazem do seu medo movimento de ataque e atacam aquel@s a quem deveriam defender, seu igual, por medo de ser igual, por desejo de ser superior. A liberdade é dialética. Haverá liberdade se pudermos libertar, ao mesmo tempo,  o coronel de seu coronelismo, os lycans de sua ferocidade e os subjugados de sua subjugação (FANON). Isso somente é possível pela educação, uma educação libertadora, porque enquanto o sonho dos lycans for imitar os coronéis, a educação não é libertadora (PAULO FREIRE). E isso explica o ódio ao intelectualismo. Um ódio que é também medo.   



domingo, 25 de setembro de 2016

Posturas decoloniais de enfrentamento e luta em defesa da educação

“Tapuia inventa tudo, inventa até o próprio Tapuia. 
(Ser Tapuia é ser construtor até do próprio Tapuia)”
                                                                                                       (Prof. Márcio José de Jesus Tapuia)

Prédio da Escola Estadual Cacique José Borges, Terra Indígena Carretão.
Foto: Flávia Passos
Ser Tapuia é uma luta constante, é se reinventar todos os dias, é viver cada dia enfrentando as pessoas que se dedicam a tornar sua vida mais difícil. Por isso, afirma a professora Tapuia Eunice Rodrigues, “ser Tapuia é estar sempre com o pé atrás”, porque nunca se sabe o que está por vir, sempre se tem a certeza que o que vem requer luta e enfrentamento. As lutas históricas do Povo Tapuia são pela garantia da vida e pela sobrevivência: são lutas em defesa de suas terras, pelo direito a viver sua cultura, a falar sua língua, à educação escolar. São admiráveis a postura política e as estratégias de enfrentamento do povo Tapuia frente aos desmandos e aos abusos que lhes são imputados pelas autoridades que deveriam defender seus direitos.


Oficina de artesanato Tapuia. Foto: Flávia Passos
Estivemos, nós do Obiah Grupo Transdisciplinar de Estudos Interculturais da Linguagem, a Profª Luciana de Oliveira Dias do Coletivo Rosa Parks, o Pe. Joaquim José Neto e a Denilza, da Subsecretaria de Educação de Rubiataba, no 24 de setembro de 2016, na Terra Indígena Carretão, em uma roda de conversas com os/as Tapuia: as professoras Eunice Rodrigues, Adriana Silva, Silma Aparecida Costa, o professor Cleiton, o Cacique Dorvalino Augusto, o Vice-Cacique Welington Vieira Brandão, e a Diretora da Escola Estadual Indígena Cacique José Borges, Maria Aparecida Ferraz de Lima.
A Profª Ana Elizabete Barreira Machado iniciou a conversa apresentando o resultado de sua pesquisa de mestrado, intitulada “Posturas Sociolinguísticas Decoloniais do Povo Tapuia do Carretão”, defendida e aprovada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. Trata-se do retorno da pesquisadora com o relatório da pesquisa para submeter à discussão com os/as interlocutores/as da pesquisa. Foi um debate caloroso e emocionado. Indescritível! Essa foi a legítima defesa do trabalho.
Equipe do Obiah na Roda de Conversa na Escola Estadual Indígena Cacique José Borges
Foto: Flávia Passos
Depois, discutimos sobre a importância de solicitarmos a inclusão do Português Tapuia no Inventário Nacional da Diversidade Linguística e também seu tombamento como patrimônio cultural imaterial da comunidade Tapuia. Foi uma conversa intensa e foi impressionante perceber como a concepção de linguagem dos/as Tapuia é politizada e transgressora, tendo-se como referência as concepções hegemônicas de linguagem, sobretudo as concepções herdeiras das epistemologias eucentradas e cristãs-cartesianas. Nosso último ponto de conversa foi sobre a urgência de políticas públicas para a educação escolar indígena. E aí, então, recebemos muitas lições de lutas e enfrentamento. Minha reflexão diante de tudo o que conversamos é: a Constituição da República Federativa do Brasil garante aos povos indígenas educação escolar diferenciada, em sua língua, respeitando seus processos próprios de aprendizagem. Por que, então, os povos indígenas têm de lutar tanto por direito à educação escolar diferenciada? “Como é que pode? Será que esse povo não conhece a lei?” Pergunta o Prof. Welington Brandão. A Profª Eunice Rodrigues discorda, declarando “Eu acho que é falta de interesse mesmo”.

Foto: Flávia Passos
Há uma tensão entre o cumprimento da Lei, de garantia da educação escolar diferenciada aos povos indígenas, e o entendimento do que seja a educação escolar indígena. No planejamento e na gestão da educação escolar indígena, ninguém nega aos povos indígenas seu direito à educação escolar intercultural. O problema é epistemológico, pois transfere-se para a escola indígena o modelo (falido) de educação das escolas não indígenas. Os/As gestores/as da educação veem os/as indígenas como crianças, porque o dominador, em sua superioridade, para se manter superior, infantiliza o dominado, é uma estratégia de dominação (baseado em F. Fanon, em Os Condenados da Terra). Por isso, os/as gestores/as educacionais acreditam que sabem o que é melhor para os/as indígenas. Mas, os/as Tapuia, que sabem, de fato, o que é melhor para eles/elas, resistem, não aceitam, enfrentam. Querem uma escola Tapuia, construída por eles/elas para eles/elas, de acordo com sua visão de mundo, com sua epistemologia, com suas concepções. Uma escola que não se preocupe em ensinar apenas as letras, mas que promova a aprendizagem das palavras, da palavramundo e das outras palavras, que permita o aprendizado do sentido da ação e do fazer, do agir e do participar e não somente do obedecer; uma escola que permita pensar, refletir e desafiar. Uma escola que promova a busca de respostas a questões como por que o direito de propriedade que proíbe o Tapuia de entrar na fazenda vizinha para visitar o cemitério ancestral de seu povo não impede o fazendeiro de invadir as terras dos Tapuia e lhes tirar o sustento? Sim, uma escola que ensine que não existe direito natural e que promova a leitura das contradições e das desigualdades impostas à vida pelas relações de poder da sociedade.  


sábado, 17 de setembro de 2016

Foi desvio de verba ou de atenção? O que vem lá?


"[...] Eu percebi que quando a gente ganha uma eleição, ô Wagner, a gente num ganha o poder, porque o poder é ramificado nas instituições, que existem para controlar o próprio governo; e que a burocracia de segundo e terceiro escalão, muitas vezes, tem mais força que o Presidente da República, porque não é pouca das vezes em que você toma decisão numa reunião ministerial, quando você sai anunciando ela pelo Brasil afora, um ano depois você descobre que ela tá parada na gaveta do cidadão, porque o Iphan num concordou, porque a Funai num concordou, porque o Ibama num concordou, porque o tesouro num concordou. Você vai descobrindo que você é enganado dentro da máquina. Aí eu cunhei a seguinte frase: o Presidente é uma locomotiva; a máquina pública é a estação; todo dia passa uma locomotiva nova, mas a estação tá lá, impávida; ela não muda; ela tá lá. Os funcionários são os mesmos, que são tudo concursado, tão lá. Eu de vez em quando falo que as pessoas achincalham muito os políticos, mas a profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja ele tem que ir pra rua, encarar o povo e pedir voto. O concursado não, se forma em uma universidade, faz um concurso e tá com o emprego garantido pro resto da vida. O político, não; ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego e, muitas vezes, consegue; outras vezes, num consegue [...]". 

Leitura do texto:
1) Enquadre textual (frame): os concursados fazem parte da máquina pública de segundo e terceiro escalão, que, na figuração linguística de Lula, é a estação, que nunca muda, que não presta conta ao povo de suas ações e de seus procedimentos. 
Então, se você, mesmo sendo servidor/a público/a federal, concursado/a e mesmo sendo corrupto/a e desonesto/a, mas se não estiver lotado/a em um órgão de segundo ou terceiro escalão, de alguma forma, diretamente ligado à Presidência da República, não precisa ficar ofendido/a, de luto, choramingoso/a, ok, você não faz parte da estação;
2) Ponto de vista defendido (contra o consenso obrigatório que "todo político é desonesto", "é proibido dizer que político é honesto": os políticos são honestos e os concursados são desonestos. 
A interpretação da Globo e da Veja, guiada pela visão maniqueísta de mundo, é tendenciosa, é maliciosa; na verdade, os políticos, de quatro em quatro anos, são postos à prova, ao passo que os/as servidores/as, aqueles/as do segundo e do terceiro escalão, não você, do estado ou do município, depois de concursados/as nunca mais são novamente reavaliados/as. 
Fica a dica: se os políticos continuam onde estão e se continuam roubando, o/a desonesto/a é o/a eleitor/a que o/a mantém lá; muito mais desonesto/a do que ele/ela, pois ele/ela se põe à prova e passa; ele pede o emprego e o emprego lhe é dado. Pensemos sobre isso. 
Lula inclusive constrói uma alegoria para ilustrar seu ponto de vista, que equivale ao nosso "quer que eu desenhe?" para não deixar dúvidas. Logo, os repúdios às suas declarações nada mais são que "declarações de culpa no cartório" ou, em bom português: a carapuça lhe serviu, cabra!  

Conclusão:
Antes de permitirmos que os/as tutores/as legítimos/as façam a leitura e nos digam qual é a interpretação do texto, façamos nós mesmos/as nossa leitura e nossa interpretação de texto; e antes de nos sentirmos ofendidos/as, façamos nosso "exame de consciência" sobre nossa condição e comprometimento de "concursado/a": Qual é o problema? Eu não tenho problema nenhum de me por à prova a qualquer momento, tenho prova e convicção de que as bancas que me aprovaram no concurso público, no mestrado (seleção, qualificação e defesa) e no doutorado (seleção, qualificação e defesa) foram bancas ilibadas, não foram bancas de amigos, compostas para me favorecer. Antes de criticar os políticos, critiquemos a nós mesmos/as que os/as elegemos, a cada pleito, mantendo-os/as em seus empregos. Serão mesmo eles/elas os/as desonestos/as ou nós que os/as elegemos, muitas vezes, às expensas de nossos valores e princípios, em nome de valores e interesses escusos?! 
O mito da expulsão do paraíso naturalizou o comportamento da busca de justificativa na tentação. Há sempre uma serpente a tentar Eva que tenta Adão e, no final das contas, a responsabilidade nunca é minha, é sempre de alguém. Olha só, o jardim do edém, Eva e Adão nunca existiram! Que a serpente não continue a decidir por nós nem a conduzir a nossa consciência.       

domingo, 3 de julho de 2016

Trajetória de Estudantes Surdas do Curso de Letras: Libras da Universidade Federal de Goiás

Conhecer melhor a história das mulheres surdas
estudantes do curso de Letras: Libras
A roda de conversas foi articulada pela estudante Poliana, aluna-ouvinte do curso de Letras: Libras da Universidade Federal de Goiás. 
O primeiro desafio da tarde foi criar o sinal para Carolina Maria de Jesus, autora negra homenageada da 2ª Jornada de Estudos do Obiah. O desafio foi logo vencido com a criação do sinal pelo estudante surdo Leonardo Ferreira 
Na sequência a articuladora da Roda fez a abertura, tecendo considerações sobre a situação sociolinguística d@s surd@s brasileir@s no ambiente familiar,preponderantemente, ouvinte em língua portuguesa. 
A Libras foi a língua oficial de comunicação da roda de conversa, sendo interpretada para o português por uma intérprete e um intérprete do quadro de profissionais da Faculdade de Letras. Deu-se início à roda de conversas com a participação de quatro estudantes surdas, com a intermediação da e do intérprete, conforme mencionado, visto que na audiência havia muitas pessoas que não sabem Libras. As estudantes utilizaram também textos escritos por elas e projetados em data-show. 

Renata

No contexto familiar, não acontecia comunicação. Minha infância foi marcada por intensas terapia de fala. Os homens da minha família, pai e avô, exigiam que eu oralizasse. Minha avó, mãe e irmã, compreendiam minha especificidade e se comunicavam por gestos. Até os 17 anos, nunca tive intérprete. Já fui constrangida em sala, por ser obrigada a fazer leitura em voz alta. Não tinha vínculos afetivos profundos na escola. Cresci sozinha. Na escola era rotulada como deficiente. Quando tive intérprete pela primeira vez em outra escola, quando tive contato com outros surdos. Neste período, aprendi a libras.  Relação conflituosa com o português. Fui exigida a me expressar bem nesta língua, mas não fui ensinada. Mesmo “falando” oralmente o português, tinha marcar de uma surda expressando nessa língua. Hoje meus pais e familiares me pedem desculpas por não aceitar a surdez enquanto identidade cultural.

 
Thalia Teixeira Fernandes

Nasci surda e tenho uma irmão gêmea ouvinte. Não houve nenhuma complicação durante a gestação. O contexto familiar foi marcado por solidão e pouca interação com os pais. Na escola, sofri perseguição por ser surda. No contexto social, consegui ter vínculos afetivos mais profundo com as pessoas surdas, a partir do uso da língua de sinais.

Greice Kelly

Minha experiência foi conflituosa. Minha surdez foi adquirida, após convulsões ainda bem novinha. Não conseguia me expressar bem em língua portuguesa. A língua portuguesa me classificava. Fui rotulada de preguiçosa.

As discussões conceberam a Libras como língua de instrução, espaço de conflitos e instrumento de lutas e conquistas sociais e políticas. Foram feitas reflexão e provocações para retomada de novas posições. Todas as falas foram marcadas por muita emoção, com relatos de momentos de solidão, de situações conflituosas no contato com a língua portuguesa, bem como com a descoberta e encontro com a cultura surda, com a Libras e com os pares linguísticos.
Independente do contexto de surgimento da surdez, todas as trajetórias são marcadas por barreiras de comunicação na família. Isso fez com que esse ambiente fosse caracterizado por solidão, negação da Libras e o incentivo à oralização em língua portuguesa.  
No contexto escolar, as falas denunciam um desconforto linguístico cultural, caracterizado pela falta de intérprete, momentos de constrangimento e falta de uma metodologia que considerasse a língua de sinais. A relação com o português é conflituosa. Todas as palestrantes, em seus relatos, demostram o quanto foram cobradas para ter uma escrita que se assemelhasse à escrita do ouvinte. Mas, nunca tiveram acesso a um ensino desta língua considerando a especificidade linguístico-cultural da comunidade surda.
Renata nos emociona ao dizer que começou a ter relações interpessoais mais profundas a partir do uso da libras e do contato com seus pares. De forma semelhante, Thalia evidencia a importância da Libras na constituição do ser surdo e no estabelecimento de vínculos afetivos mais profundos.
Greice Kelly, com um tom mais político, menciona que a relação do surdo com a língua portuguesa é conflituosa, pois os surdos são classificados negativamente a partir dela, principalmente no ambiente escolar. Situação semelhante acontece com o surdo no ambiente laboral, já que todas as informações circulam prioritariamente em português. O surdo quase sempre fica alheio aos acontecimentos. Berlânia finaliza os relatos mostrando seus desafios pessoais em aprender a Libras e a motivação para adentrar nesta outra forma de significar o mundo.
Após as falas, as discussões ocorreram em torno das relações de poder entre Libras e língua portuguesa e a urgente necessidade de políticas educacionais efetivas, na atualidade, que proporcionem o acesso pleno a estas línguas e o reconhecimento e respeito da comunidade surda, principalmente no ambiente escolar, para que os surdos possam se empoderar como seres humanos e cidadãos.
Em resumo, o desconhecimento da surdez pelos profissionais da saúde, a não aceitação da surdez pela família, o desconhecimento, a não aceitação da surdez e o despreparo profissional por profissionais da educação, tudo isso associados à falta de políticas públicas voltadas para o adequado atendimento às pessoas surdas e à falta de planejamento educacional sustentado por políticas públicas e fundamentado nos direitos humanos e nos direitos civis e sociais das pessoas surdas estão fazendo com que os surdos vivam, desde que nascem, na solidão, um mal que acomete os diferentes.
Diante das trajetórias narradas pelas estudantes Renata, Berlânia, Thalia e Greice Kelly, uma pequena amostra de um complexo universo, é urgente o planejamento sério e responsável de políticas no campo da saúde e da educação, envolvendo não somente os surdos, mas, principalmente, suas famílias. É preciso esclarecer amplamente o que é a surdez e do que os surdez necessitam com urgência em suas vidas. Estamos falando de seres humanos e a vida não pode esperar.    
  








sábado, 7 de maio de 2016

RODA DE CONVERSA Trajetória das Carolinas de Jesus da Faculdade de Letras da UFG

A II Jornada de Estudos Interculturais Transdisciplinares da Linguagem, realizada pelo Obiah, tem início no dia 17 de maio com a Roda de Conversa Trajetória das Carolinas de Jesus da Faculdade de Letras da UFG, que conta a trajetória das professoras negras e mestiças da Faculdade de Letras/UFG, e segue até dezembro de 2016 com várias rodas de conversa sobre temas diversos, envolvendo debates sobre o pensamento negro brasileiro, o pensamento feminista brasileiro, as trajetórias e as histórias das pessoas que tiveram de romper as fronteiras das desigualdades e enfrentar opressões interseccionadas em suas mais diferentes manifestações.

17 de maio de 2016 
Miniauditório Egídio Turchi - Bloco Cora Coralina da Faculdade de Letras, Campus Samambaia/UFG

14 horas: Cerimônia de abertura da II Jornada de Estudos Interculturais Transdisciplinares da Linguagem:

Cerimonialista: Nathália Pereira de Oliveira Sousa.

Declamação das poesias de Carolina de Jesus: Simião Mendes Júnior

Fala de abertura: Tânia Ferreira Rezende

Quem foi Carolina Maria de Jesus? Por Flávia Cristina Passos de Almeida
Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais, numa comunidade rural onde seus pais eram meeiros. Aos sete anos, sua mãe forçou-a a frequentar a escola depois que a esposa de um rico fazendeiro decidiu pagar os estudos das crianças pobres do bairro. Carolina parou de frequentar a escola no segundo ano, mas aprendeu suficientemente a ler e a escrever. Por ter sido acusada de roubo na paróquia da cidade onde morava, resolveu ir embora, a pé, para São Paulo. Mudou-se para a capital paulista em 1947, momento em que surgiam as primeiras favelas na cidade. Moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo, ela trabalhava como catadora. Quando encontrava revistas e cadernos antigos, guardava-os para escrever em suas folhas. Começou a escrever sobre seu dia-a-dia, sobre como era morar na favela. Em seu diário, ela detalhava o cotidiano dos moradores da favela e, sem rodeios, descrevia os fatos políticos e sociais que via. Ela escrevia sobre como a pobreza e o desespero podem levar pessoas boas a cometerem erros graves para, assim, conseguirem comida para si e suas famílias.  Jamais cedeu às condições impostas a sua classe social. Em uma vizinhança com alto nível de analfabetismo, saber escrever era uma conquista incomum, Carolina de Jesus tinha consciência disso e sempre usou a escrita como uma arma de luta social e política, enfim, como uma defesa. Carolina escreveu poemas, romances e histórias. Um dos temas abordados em seu diário foram as pessoas do seu entorno; a autora descrevia a si mesma como alguém muito diferente dos outros favelados e afirmava “que detestava os demais negros da sua classe social”. Ao ver muitas pessoas do seu círculo social sucumbirem às drogas, álcool, prostituição, violência e roubo, Carolina lutou para se manter fiel à escrita e aos filhos, a quem sustentava vendendo lixo reciclável e com as latas de comida e roupa que encontrava no lixo.  Isto aborrecia seus vizinhos, que não eram alfabetizados, e, por isso, se sentiam desconfortáveis por vê-la sempre escrevendo, ainda mais sobre eles. Carlina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, em abril de 1958, quando uma gangue de rua chegou e reivindicou o uso do parque recém-inaugurado na favela, perseguindo as crianças. Dantas viu Carolina de pé na beira do local gritando "Saiam ou eu vou colocar vocês no meu livro!", essa sempre foi sua arma mais poderosa! Os intrusos partiram. Dantas perguntou o que ela queria dizer com aquilo. Ela se mostrou tímida no início, mas levou-o até o seu barraco e mostrou-lhe tudo. Ele pediu uma amostra pequena e correu para o jornal. Apesar do pouco estudo, tendo cursado apenas as séries iniciais do primário, ela reunia em casa mais de 20 cadernos com testemunhos sobre o cotidiano da favela, um dos quais deu origem ao livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. Sua obra traz relevantes informações para a compreensão da condição de vida nas favelas brasileiras da época, inclusive uma definição sociológica de favela, ao afirmar que “a favela é o despejo da cidade”. Após o lançamento, em 1960, seguiram-se três edições, com tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países. Seu auge e decadência como figura pública foram fugazes. Isso possivelmente ocorreu devido à sua personalidade forte, que a afastava de muita gente, além da drástica mudança no panorama político brasileiro, a partir do golpe de estado em 1964, que marginalizaria qualquer manifestação popular. Pobre e esquecida, Carolina Maria de Jesus morreu em 1977, de insuficiência respiratória, aos 62 anos. Ela é considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil.
14h30: Roda de Conversa de Abertura da II Jornada

Trajetória das Carolinas de Jesus da Faculdade de Letras da UFG  



Cristiane Batista do Nascimento, do curso de Letras: Libras e Letras: tradução e interpretação em Libras/Português.

Luciana de Oliveira Dias, do curso de Educação Intercultural do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior de Professores Indígenas, com atuação também no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG.

Sara Guilliana Gonzales Belaonia, do curso de Letras: Espanhol.

Tânia Ferreira Rezende - articuladora - do curso de Letras: Português, com atuação também no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG, área de Estudos Linguísticos, Linha de Pesquisa Linguagem, Sociedade e Cultura. 




E foi hoje, e cá estivemos nós, as Carolinas de Jesus da Faculdade de Letras da UFG... momentos de muitas emoções... tarde histórica! Inesquecível!

Foto: Vinícius Batista

Nessa nossa caminhada terrena nos encontramos, de diferentes maneiras, por diferentes estradas e distintos motivos, em diversos momentos. O importante é que nos encontramos e nesse encontro nos doamos e nos trocamos. Nos encontramos com nossos risos, nossas dores e nossos choros... históricos, imemoriais. 


Foto: Vinícius Batista


As filhas de Jesus, de Ogun, de Exu, de Iansã, os filhos e as filhas de tantos e tantas orixás, ali silenciosos e silenciosas... silenciados e silenciadas... se deram, se entregaram, se abriram, se acolheram e se deixaram acolher pelo abraço da entrega, do dizer, do ouvir, do calar, do pensar.    



Foto: Vinícius Batista

Foto: Vinícius Batista
Nathália fez a chamada, deu o passo inicial... a voz agarrada na garganta da mulher que receia em gritar! É a fala abafada ainda a fala que não pode falar... mas já o poder mágico... Obiah!
Foto: Vinícius Batista




E Carolina Maria de Jesus foi clamada por Flávia Passos, que a representou, que a interpretou. E Carolina, poetisa, foi declamada por Simião Jr. A mulher grande agigantou na voz do artista que encantou. É Obiah!, poder mágico da linguagem, o poder de encantar. 





Cristiane Batista nos emocionou a todas/os com sua trajetória de otimismo, seu olhar brilhante diante do mundo e sua convergência diferenciada em seu ritmo demorado, melódico e poético, poesia que nos trouxe lágrimas, demoradas lágrimas, que teimavam em se resguardar. Luciana Oliveira, que nunca soube ser só, que em sua resistência à violência masculina, doméstica, desde a concepção se unira a uma irmã, como estratégia de resistência e de sobrevivência, nos chamou à luta, dentre outras, contra a violência silenciosa e bruta da anti-intelectualidade feminina. Sara Gonzales, a estrangeira, mãe solteira de uma filha e um filho, encontrou forças na Umbanda e resistência no domínio da língua portuguesa e na formação universitária nesta terra, que é sua terra de coração, nos chama atenção para a importância de se aprender língua estrangeira e transitar pelos mundos e culturas dos outros. Tânia Rezende, a do cabelo enrolado de raiz lisa, fala de seu desmerecimento pelo cabelo e do inferiorização da mulher negra pelo cabelo, um bem simbólico. Expusemos nossas dores, nossas chagas. Choramos muito. Foi um choro coletivo como nunca antes se viu nesse miniauditório Egídio Turchi, não pelos motivos agora expostos. 

Ser negra
Cristiane Batista do Nascimento

O ser negra me deu características virtuosas,
Deu-me paciência, já que eram necessárias horas e mais horas sentada enquanto trançavam meus cabelos,
Deu-me resistência a dor, pois ao pentearem meu cabelo crespo, sem uma gota de água, lágrimas de dor escorriam da face em decorrência das puxadas do pente,
Deu-me força, porque cada palavra negativa e racista só me fazia lutar para mostrar o meu potencial,
Deu-me sensibilidade para trabalhar com pessoas como eu, vítimas de rejeição,
Deu-me motivação para querer ser melhor, tendo em vista que a preferência tinha cor branca e cabelos “bons”
Ser negra me fez ser melhor, pois solidarizava-me com o sofrimento e humilhações passadas por outros, já que sofria com o mesmo mal,
Não sou vítima do sistema,
Não tenho necessariamente que ser babá, doméstica, atleta e musicista 
Quero que fique claro!
Não estou desmerecendo nenhuma profissão!
Posso ser o que eu quiser ser,
Sou negra com muito orgulho!
Não me chame de morena, por favor!
Gosto de ter mais melanina!
Não me sinto melhor e nem pior que ninguém
Quando vamos parar de nos segregar?
Por que temos que nos dividir em ricos e pobres? Negros e brancos?
Ser negra para mim é um privilégio,
Não porque eu seja melhor,
E sim porque, enquanto fui oprimida, pude me compadecer de outros humilhados pelo sistema.
Nas expressões da minha língua, há os pessimistas que preferem associar o negro ao ruim
Eu prefiro dizer:
 – Sou escura como a noite e meus olhos brilham como as estrelas que só são visíveis na escuridão.




Reinvenção 2


Tânia Rezendeem Confissões de Bertoleza 

A desculpa da invenção
foi a solidão no paraíso
daí pra escravização
nem navegar foi preciso
ligada pelo osso
presa pelo pescoço
por fim a eterna peia
peada fechada no medo

Cresce muda
segue assustada
calada na calada a força tange
tece trança amarra desata 
sobe descobre desvenda
a venda na venda à luz

Encarnada lânguida e pérfida
Pi... (π)... navegação dos amores
constância curva circunferência diâmetro
encantamento feitiço magia
sonho alegria
debut debuta debocha
sorri ama cuida cama ama
alimento... alivia alimenta
enche incha prenhe emprenhada
odores sudorese lágrimas de sal
do jorro do sêmen animal
jorra o sangue vital
seio alimentação desejo
alimenta... pari passu!
Do broto à floração 

Entranhas rasgadas 
veias abertas
estupor
entranhas dilatadas
Pari e ri e chora e acalenta
no seio farto alimenta
refrigera o ar da terra
dá vida à luz
dá à luz a vida
cordão vital 
mais um sobrevivente emocional
Fêmea na arrebentação
Cumprido o ciclo
finda a missão
ninho vazio
abandono 
ingratidão
endossa a conduta
salva o conduto
jorra o sangue mortal
pedaços de alma 
fragmento coronal
no outrora leito conjugal
Mulher na humilhação
Dor profunda
mágoa silenciosa
febre alucinação
sofre chora grita
revolta
tremula irrita
enlouquece
esquece
segue
Deusa na superação

Enquanto a vida rasgar a terra pra brotar
Enquanto a terra parir a vida pra fertilizar
A mulher´é mulher...mulher exclusivamente