segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gêneros da alma

Ainda falando de respeito humano e ao ser humano. Em nossa cultura, respeitam-se os homens, ainda que estes não mereçam nem sejam dignos de respeito. Os homens temem os homens e, por isso, os respeitam. Não temem as mulheres e, por isso, não as respeitam. O namorado é cuidadoso e receoso com relação ao pai da namorada. Se, todavia, a namorada não tiver pai o namorado fica "bem mais à vontade". O vizinho respeita muito a casa e a família ao lado, porque na casa está o marido, o pai, a figura masculina digna de respeito.Ainda que o patriarca não seja o chefe de família. Os homens tendem a não respeitar a casa da viúva nem da separada. Falta a figura imponente do macho. A moça, quando se prepara para se casar, recebe como aconselhamento de uma mulher mais velha (a mãe, a avó, a tia…): "tome todas as decisões e providências, faça o que for melhor para sua família e sua casa, mas deixe seu marido pensar que é a vontade dele, que é ele quem está decidindo e tomando as providências, faça parecer que ele é a autoridade da casa". Pode-se depreender disso que o homem é e sempre foi frágil e inseguro, embora detenha força física, não esteja sujeito a efeitos hormonais cíclicos nem tenha sido historicamente oprimido como a mulher. Foi necessário um intenso trabalho de empoderamento do masculino e repressão do feminino. Há um construto simbólico-discursivo mantido pela tradição, em que a mulher precisa de um homem, ela só estará amparada se estiver sob a guarda e custódia de um homem (o pai, um irmão, o marido); ela só será digna de respeito se tiver um homem que a defenda e responda por ela; e por aí vai.
A mulher conquistou espaço e passou a ser também a provedora, além de ter poder de decisão e tomada de atitude, ser capaz de administrar a vida no lar, organizar a casa e cuidar da família, sem perder a ternura, a doçura e feminilidade. Os papéis entraram em processo de reelaboração. Nesse processo, o papel do masculino parece não se contrastar mais com o feminino. Pelo contrário, parecem se (con)fundir. Entretanto, a neutralização de papéis entre o masculino e o feminino, aos olhos da sociedade conservadora, diminui o homem e o feminiza. Estamos em processo de construção do homem feminino e da mulher maculina. E o homem, que deveria assumir com orgulho esse novo perfil, sente-se perdido e inseguro. A mulher, sobrecarregada e dividida, sente-se cansada. Ouvi de um psicólogo amigo meu; "a mulher queria ser igual ao homem, taí, agora aguenta". A mulher não queria ser igual ao homem. A mulher quer ter os mesmos direitos na vida, na sociedade; ser respeitada como ser humano e como mulher; a mulher quer dar visibilidade ao seu papel na família e na sociedade; deixar de fazer de conta que é secundária, não ter de deixar o marido e a sociedade pensarem que é o marido que faz tudo, quando na verdade é ela que faz. Visibilidade, reconhecimento e justiça: é isso que a mulher quer, na verdade, sem perder a feminilidade. O que aconteceu é que a mulher assumiu, de forma escancarada, todos os deveres e responsabilidades, sem ter direitos. E a sociedade legitima isso com seu discurso machista ultrapassado.
Mesmo diante dessa conjuntura, o homem resiste em respeitar a mulher, em dispensar à mulher o respeito humano que todos merecemos. Todos sem exceção devem ser respeitados, pois os anjos (espíritos) não têm sexo e o gênero da alma é não-marcado.  

Idades da alma

Em nossa cultura, em todas as épocas, fala-se muito no respeito à natureza e ao próximo. Exige-se respeito, mas respeita-se pouco. A palavra ‘respeito’ vem do latim re + specto, significando olhar para trás. Com o uso, o item foi adquirindo outras significações. Em contextos religiosos, cristãos, temos nos dez mandamentos o honrar pai e mãe, que remete ao respeito. Tal acepção relaciona ‘respeito’ com ‘temor’: quem teme a Deus, respeita a Deus. Assim, honrar pai e mãe é temer e respeitar pai e mãe. Em contextos de relações sociais, exigem-se respeito aos mais velhos e aos superiores. Atualmente, além dessas significações mais antigas, uma das mais usuais é ‘estima’ e ‘consideração’. Então, ter respeito por alguém pode significar temer, honrar, ter estima e consideração por esse alguém. Observamos também, na sociedade, que há uma hierarquia etária de respeito, dos mais velhos para os mais novos e da forma em que os discursos são organizados, pode-se inferir que as crianças não são respeitáveis. Podemos notar também, na cultura brasileira, que, em geral, os homens são mais respeitados que as mulheres, o que reaproxima o conteúdo de ‘respeito’ ao de ‘temor’. Os homens temem outros homens, por isso, os respeitam.
Neste espaço, quero discutir ‘respeito’ como um tipo de postura e atitude, inserido na hierarquia etária da sociedade. Essa acepção está fazendo com que o direito de algumas categorias sociais torne o uso do conceito ‘respeito’ uma estratégia discursiva apelativa, com a finalidade de persuasão, convencimento. Assim, os mais velhos devem ser respeitados por todos, uma pessoa idosa é digna de respeito. As autoridades, independentemente de sua idade, devem ser respeitadas, os pais, ainda que jovens, devem ser respeitados. No fim das contas, sobram os adolescentes e as crianças.
Não discordo das normas sociais vigentes em nossa cultura. Respeito-as! Todavia, gostaria de defender o respeito aos adolescentes e às crianças. Para tanto, tenho de apelar para o cultivo do respeito ao ser humano, consideradas suas diferentes fases no ciclo da vida. Uma criança merece tanto respeito quanto um idoso. Os problemas das crianças (e também dos adolescentes) aos olhos dos adultos parecem bobagem, pois estes já passaram pelos mesmos dramas e em sua adultice lidam com coisas muito mais graves e sérias. Para as crianças, entretanto, seus problemas são problemas, reais e graves, dentro do constexto e dos limites da infância. É preciso relativizar e ver o outro em seu contexto e em seu momento, considerando os limites tanto do respeito quanto da liberdade.
Os idosos, por outro lado, se reservam o status de "os respeitáveis", por excelência. Em nome disso, querem ditar as regras de conduta e as normas gerais de comportamento. Eles consideram normal, natural e correto que um grupo inteiro de pessoas deixe de viver para respeitar os seus direitos de idoso, para satisfazer seu desejo, necessidade e, muitas vezes, seu capricho de idoso. É preciso relativizar e considerar que todos têm direito a serem respeitados em sua condição de humano.Todos, sem exceção nem ressalvas, merecem respeito em sua condiçao e integridade, porque a alma (o espírito) não tem idade e, ao mesmo tempo, tem todas as idades. Uma criança, muitas vezes, em sua experiência de vida iniciante, está mais aberta, e ajuda um adulto ou um idoso a ver o mundo e os fatos de uma forma diferente, em geral, mais leve e mais justa.

CORES DA ALMA

O item lexical ‘negro’ vem do Latim ‘niger, nigra, nigrum’, significando, por volta do século XIII, cor preta ‘preto‘, sujo, lúgubre; nessa acepção, deriva da raiz -nec(r)~-neg(r), semantema relacionado a escuro (= a cor da morte [necrose, necrotério, etc.], do luto e da tristeza, em algumas culturas) e à negação, negativo, como em ‘negócio‘, que é a negação (ação de negar, impondo seu contrário) do ócio. Negro/a, então, seria a negação (ou a afirmação do seu contrário, do seu oposto) de quê? Acaso é o sujo, contrário de limpo? Ou o escuro, contrário de claro? É o negativo, contrário de positivo? Ou o escuro, sem cor, negação da cor? O léxico, de qualquer língua, é prenhe de ideologia e valorações sociais, historicamente construídas, e nossas escolhas lexicais podem construir e legitimar mentalidades. Quando os romanos nomearam as/os africanas/os de ‘nig-’, impingiram a elas/eles toda a carga semântica, socialmente contruída, da raiz -nec(r)~-neg(r). Cada vez que usamos, de forma pejorativa, o lexema ‘negra/o’, em alusão às cidadãs e aos cidadãos afro-descendentes, legitimamos e fixamos os valores hitórico-sociais construídos e atribuídos a esse povo.  Os povos de cor escura são inferiorizados, discriminados, humilhados e excluídos das esferas e dos espaços de prestígio social. Relegados ao abandono e à pobreza, no geral, salvo poucas exceções, são intimidados e impedidos de desenvolver suas habilidades. Quando as desenvolvem, a despeito dos obstáculos, não podem visibilizá-las. São tratados pela sociedade como incapazes e desprovidos de alma. São reificados, são peças. Tudo isso de forma sutil e quase imperceptível a olho nu, com o aval da sociedade e as bênçãos dos representantes de Deus. A esfera mais poderosa de fixação e legitimação dessas injustiças cósmicas é a do sagrado. As formas de manifestação e de experienciação do sagrado são diferentes, de povo para povo, de cultura para cultura. Algumas são legítimas e reconhecidas outras não; algumas inferiorizadas vão, paulatinamente, conquistando respeito, a maioria nem consegue externar sua existência. Algumas formas de expressão e experienciação do sagrado são consideradas ‘religião’, outras são ‘crenças’, e outras são ‘seitas’. Tudo o que não for considerado ‘religião’ deve ser combatido, expurgado. Logo, seus seguidores serão perseguidos. Assim, os afro-descentes se vêem forçados a se ‘converterem’ a alguma ‘religião’ para salvarem, não as suas almas, mas as suas peles.
Quem decide? Com base em quê e sob quais critérios e circunstâncias?
As mulheres e os homens de cor escura, amparadas/os pela lei, ainda que em pequeno, mas significativo número, vêm cada vez mais conquistando espaços na sociedade. Com isso, essas mulheres e esses homens estão podendo mostrar que são tão capazes como qualquer outro ser humano, que são tão sensíveis quanto qualquer pessoa, que são humanos até mais que muitas pessoas que se julgam muito humanas. Essas mulheres e esses homens possuem alma e coração; são amáveis e sensíveis; são inteligentes e sábios; trazem em si a sabedoria milenar (e até mais) de seus ancestrais e uma profunda consciência cósmica, expressa no respeito a seu semelhante e a si mesmas/os. 
Ora, a alma não tem UMA cor! A alma é de todas as cores! A alma colorida pela alegria e pelo amor faz bem a toda a Humanidade e é disso que precisamos: de almas coloridas

CIRCUNCISÃO NA ALMA

Nos países, cujas culturas não primam pela prática da circuncisão,
as mulheres são preparadas para a vida de uma forma diferente.
São educadas para a virtude e a pureza (pudor) do mesmo jeito.
A despeito da não existência da prática da circuncisão,
as mulheres são castradas, de uma forma que, mesmo sendo liberadas e recebendo permissão,
ou mesmo sabendo que podem qualquer coisa,  não conseguem se soltar nem se entregar.
Trata-se de uma circuncisão mental (psicológica). Não é somente o corte de um pedaço do corpo que mutila a mulher.
A educação repressora desenvolvida em forma de persuasão também mutila, e para o resto da vida.
Este texto é parte de uma reflexão sobre violência simbólica contra a mulher publicada no blog "Confissões de Bertoleza".