quinta-feira, 17 de março de 2011

A mulher e o garoto

Aconteceu no terminal da Praça da Bíblia. Enquanto eu bebericava um delicioso suco de uva natural, artesanalmente fabricado no vinhedo de Itaberaí, cheguei até a janela para dar uma olhadinha no que acontecia no mundo. Lá estava uma mulher discutindo com um garoto. Ela, loira, alta, esguia, com aparência de mais ou menos 35 anos de idade (esse tipo de informação é fundamental, claro), trajava um vestido longo, estampado, com fundo em amarelo, trazia em uma das mãos uma sacola plástica da C&A. Ele, moreno claro (no Brasil, temos essas gradações), até meio pálido, alto, magro, muito magro, aparentando mais ou menos uns 17 anos de vida, vestia ainda o uniforme do colégio. Ela gesticulava, gesticulava, ele também, ambos no mesmo ritmo de gesticulação, parecendo reproduzir com as mãos o ritmo da fala. Brigavam? Parece que sim. Ela esbravejava e ele a enfrentava, à mesma altura. De repente, ela lhe entrega algo, dinheiro?? Acho que era dinheiro. Ele pega sem olhar, nem pra ela nem pro objeto. Discutem mais... brigam, ela esbraveja e ele não deixa por menos, esbraveja também, segurando o dinheiro, devia ser dinheiro mesmo. Eles começam a deixar o local, tomando direções opostas. Ele, mancando, em direção à saída do terminal, e ela à entrada, sem mancar. Ela se volta, diz algo, ele se volta e responde, no mesmo tom, ou melhor, com a mesma expressão, é tudo que posso perceber. Ele vai pra saída, mancando muito, sai. Ela se dirige à entrada. Entre eles, a grade amarela e suja de óleo escuro e viscoso do terminal, ela de um lado e ele de outro, continuam brigando, ela está muito brava, ele retruca sem olhá-la. Ele manca até se afastar da grade, ela entra no terminal. Ele atravessa a rua e chega à praça do rato de praça, ganha a rua e desaparece; ela se mistura à multidão no interior do terminal, segue em frente, cabeça baixa, sacola plástica da C&A na mão, segura firme e vai... some e aparece, some e aparece, até que atravessa para o outro lado e desaparece do meu campo de visão. Para onde foi ele? Para onde foi ela? Por que brigavam? Para que era o dinheiro (dinheiro??) que ela deu pra ele? Por que deu dinheiro a ele? Nunca vou saber, mas foi legal observar enquanto bebericava meu suco de uva, trazido lá de Itaberaí.

terça-feira, 8 de março de 2011

ÀS BERTOLEZAS DO SÉCULO XXI


A morte é a libertação, porque  
 a libertação está na coragem de ter atitude

Hoje, em mais um Dia Internacional da Mulher, fiquei pensando e me perguntando: Mudamos? Em quê? Como? Como somos e como estamos agora? E mais uma vez me vieram à mente as imagens da Bertoleza, lá no cortiço. Essas imagens me seguem desde que li pela primeira vez, nem me lembro mais quando foi, O cortiço, de Aluísio Azevedo.
Quatro informações sobre Bertoleza sempre foram cruciais para mim, talvez por uma questão de afinidade entre mim e ela. Afinidade que foi se ampliando ao longo de minha vida: 1. Bertoleza era negra enganada – escrava de mentira e alforriada de mentira; 2. Bertoleza foi usada, explorada e libertada pela morte de seu algoz; 3. Bertoleza foi usada, explorada e desalforriada, para a conveniência do amásio; 4. Bertoleza foi libertada por si mesma, por sua própria atitude.   

Bertoleza foi enganada, usada e usurpada de todo o direito à liberdade por seu falso dono. Ela cria que aquele era seu senhor e, então, trabalhou duramente, honestamente e confiantemente, guardando cada tostão que ganhava para comprar sua alforria. Sonhava com o dia em que seria livre. A morte levou seu senhor e com ele sua  esperada alforria. Bertoleza trabalhou em vão.

João Romão consolou-a, amparou-a, prometendo-lhe a tão sonhada liberdade. Bertoleza amasiou-se com João Romão e este tirou-lhe cada centavo economizado durante toda a vida. João Romão enriqueceu e se fez “gente” à custa das economias, do parco mobiliário e da mão de obra de Bertoleza, para depois lhe tirar cada suspiro de esperança, de fé na vida e no ser humano.

Já homem de sociedade, rico e bem posto, João Romão precisava de uma esposa apresentável, educada e filha de “boa família”. Para isso, ele precisava se livrar da amásia negra – escrava era coisa fácil de se adquirir, já uma dama da sociedade para tomar por esposa era muito difícil. João Romão não hesitou em denunciar Bertoleza ao seu verdadeiro dono para lhe colocar em seu “verdadeiro lugar”, para mandar-lhe de volta ao seu lugar original de pertencimento. Bertoleza viu esvair-se o empenho de toda uma vida e ser-lhe arrancada a esperança de alcançar seu bem maior.

Com a mesma destreza com que manipulava a faca para limpar peixes, Bertoleza rasgou-se de cima a baixo, pondo fim à sua busca por liberdade: se a morte de seu algoz não fora suficiente para lhe garantir a alforria, ninguém poderia lhe tirar a liberdade conferida pela morte. A morte é democrática e justa, se não perdoa nem isenta ninguém, também não discrimina nem exclui. 

Bertoleza foi enganada, usada e usurpada de todo o direito à vida por seu falso amásio.  
 
É impossível precisar qual dos “senhores” enganou e usou mais aquela mulher, do que se conclui que mudam, com o tempo, as maneiras de enganar e explorar, mas o fato continua o mesmo. Ainda hoje, em pleno século XXI, os homens continuam a praticar as mesmas canalhices, porém, de modo mais sofisticado, legitimado pelo mesmo discurso engajado,que esbraveja em defesa dos direitos da mulher.

As mulheres, por sua vez, continuam a acreditar nas forjadas falsas boas intenções masculinas, "afinal os tempos são outros, se eu fizer a minha parte..." Na verdade, nem acreditam, se deixam enganar de propósito, porque morrem de medo de ficar sem homem. Continuamos a nos amasiar a qualquer João Romão vira-lata e mal intencionado que nos consola e promete qualquer coisa que, sabemos muito bem, nunca vai cumprir!

A sociedade, com os olhos vendados pelos raios transparentes da hipocrisia, permite, abençoa e aplaude toda e qualquer atitude machista. As próprias mulheres, tão enganadas e usurpadas quanto a Bertoleza, contribuem para a perpetuação desse comportamento coletivo, afinal de contas, "se ela não soube segurar seu homem, o problema é dela... " E por aí vai. No fundo, no fundo são todas Bertolezas, em maior ou menor grau, e eles são todos João Romão, em um só e mesmo grau.

Mudamos? Em quê? Como? Como somos e como estamos agora? 

Não mudamos, a sociedade mudou e agora contamos com alguns artifícios e algumas estratégias que nos protegem de nós mesmas, de nossa profunda crença na humanidade do masculino. Nós mudamos nosso discurso e nosso comportamento para acompanhar o nosso tempo, que nada mais representa do que o desejo de estar na moda. 
Depois de tantas lutas e conquistas, na esperança de que as novas gerações possam viver em uma sociedade mais igualitária e justa e, assim, usufruir de tudo que as gerações anteriores conquistaram, assistimos a um retrocesso lamentável: uma parte das mulheres “dessa nova geração” usa os homens como burro de carga, provedor de suas futilidades, e como objeto sexual descartável, ao passo que outra parte garante aos homens meios de ser o burro de carga e o objeto sexual descartável daquelas que eles tanto desejam. Os homens continuam, em essência, pensando e agindo como nossos avós e nós, mulheres, continuamos a pensar e agir como nossas avós, tanto as damas da noite quanto as damas da sociedade.  

Não mudamos nosso sentimento, nem nossa maneira de sentir e de expressar o que sentimos. Somos Bertolezas em nossa ingenuidade feminina e fragilizada, mas não somos Bertolezas na coragem e na dignidade de ter atitude e mandar às favas esses machos com seus jogos e conchavos. Não somos Bertolezas na coragem de mandar às favas aquele macho que nos procura e, doce e dissimuladamente, nos usa para ferir e sacanear sua companheira de uma vida inteira.

Infelizmente, não temos a dignidade e a honradez de uma Bertoleza, nos faltam cor a gem e sangue.