quinta-feira, 25 de maio de 2017

Decolonização da percepção sociolinguística

O emprego dos possessivos e a reencarnação de Antígona



As escolhas que fazemos em nossas performances linguísticas, consciente ou inconscientemente, mais ou menos cuidadosamente, na edição das narrativas que compomos, na vida cotidiana, revelam as epistemologias, as teorias, as ideologias e os valores que nos situam e nos guiam no mundo. Nossas práticas são tão naturalizadas, que (re)agimos no mundo, conforme as situações, os/as interlocutores/as, movides/as/os e motivades/as/os pelas circunstâncias e, raramente, prestamos atenção às razões, pelas quais (re)agimos, da maneira que (re)agimos e por que fazemos as escolhas que fazemos.

Uma reação muito naturalizada é o julgamento de/a/o outre/a/o, não raro um ativador de prejulgamentos e demonizações, principalmente de diferentes, que nada mais são do que nossa imagem refratada no espelho da realidade. Por que julgamos tanto? Por que temos tanta necessidade de julgar? Julgamos nossa própria imagem, nosso julgamento é a projeção de nós mesmes/as/os em outres/as/os. Talvez seja um mecanismo de autodefesa, talvez, vai-se saber.

Outra prática corriqueira, correlacionada à anterior, é a auto-martirização (personalização/individualização) – o ato de nos colocarmos, sempre, no centro do universo, para atrair atenção, para sorrir ou para chorar. Ultimamente, está praticamente impossível desenvolver qualquer tipo de discussão ou de propor e desenvolver qualquer ação coletiva, porque toda manifestação - política, social, coletiva - é arrastada para o pessoal, individual, que, em geral, sofre muito com a demanda (ação ou denúncia) e, assim, atrai para si a compaixão e a comiseração coletiva, ao mesmo tempo em que leva a (pre)julgamento a pessoa que demanda a ação ou proposta política coletiva, demonizando-a, conseguindo pôr fim à discussão, ação ou denúncia. Perde a coletividade, ganha o "sistema-mundo".

As práticas mencionadas nos parágrafos precedentes revelam estratégias antigas, empregadas para pôr em combate e em disputa forças iguais, as dominadas, que precisam ser controladas, enquanto as forças dominantes seguem com seus projetos perversos. Ai de quem tentar abrir os olhos da coletividade para esse fato, "não vai ter perdão!" Para se construir essas narrativas, que considero perversas e sustentadoras da colonialidade, são feitas edições e seleções sociolinguísticas, muitas vezes, tão naturalizadas e tão “simpáticas”, “afetuosas”, que nem percebemos. Correndo todos os riscos da demonização, é disso que quero tratar neste texto.

Há algum tempo, venho observando na Universidade o comportamento sociolinguístico das pessoas que fazem falas públicas e o que suas práticas sociolinguísticas revelam de suas condutas ideológicas e políticas. Neste ano, nas campanhas eleitorais, na Universidade, passei a observar o comportamento dos/as candidatos/as, sobretudo daqueles que considero carreiristas, os que pulam de cargo em cargo, para depreender o que suas práticas sociolinguísticas podem mostrar a seu respeito. Não foge muito do que vi antes. Há, na postura política dessas pessoas, revelada em suas práticas sociolinguísticas, a co-fusão entre público e privado e o velho costume da apropriação do bem público. Essas práticas podem ser vistas 1) no uso do pronome possessivo, em correlação com 2) a forma seletiva da campanha eleitoral.  

1) O uso do possessivo
É muito comum pessoas públicas, em geral, empregarem o pronome possessivo, em referência a bens que não lhes pertencem, principalmente, o patrimônio público, como em: “Não duvidamos, mesmo nas horas mais difíceis, que o nosso país já estivesse amadurecido suficientemente para que as regras e fundamentos da moral e do direito resistissem a tôda sorte de desregramentos da paixão” (Juscelino Kubitschek, 1956). Em 1 de janeiro de 2015, o Governador de Goiás, Marconi Perillo, iniciou seu discurso de posse, citando versos de Cora Coralina e, na sequência, afirmou: “No passado, alguns movimentos foram decisivos para a formação de nossa sociedade e para assegurar a consolidação de nosso Estado como um dos mais pulsantes e desenvolvidos do Brasil”. [...] “Os bandeirantes vieram de fora para buscar a integração do nosso território a um projeto nacional” (Jornal Opção). 

O emprego do possessivo, nos contextos e funções apresentados, se popularizou nas falas públicas, de modo geral. As pessoas que trabalham nas secretarias de estados e municípios, por exemplo, com assistência social aos idosos, se referem a estes como “os meus idosos”; as que trabalham com crianças dizem “as minhas crianças”; os profissionais da educação, que atuam em uma determinada escola, e também com relação a estudantes, dizem “a minha escola”, "nossos alunos". Da mesma forma, gestores/as responsável pela escola: “a nossa escola”, “os nossos professores”, “os nossos alunos”. Há um sentimento de apropriação naturalizada do bem público, das pessoas e dos corpos, refletida nas práticas sociolinguísticas. Há um consenso de que esse emprego do possessivo é uma estratégia de aproximação com os interlocutores e uma forma de conferir aproximação e afetividade com o "objeto possuído", que não é posse (ou pelo menos não deveria ser) de ninguém, a não ser do povo, exceto pelas pessoas.

O pronome possessivo é possessivo porque sua função prototípica é justamente indicar posse. Ainda que ele seja usado para promover outros efeitos de sentido, sua função prototípica é somente enfraquecida, mas nunca totalmente esvaziada. Então, quando a pessoa diz “nossa faculdade”, “nossos professores” e “nossos alunos”, ela está revelando seu sentimento de posse sobre a faculdade, um bem público, e sobre os professores e os alunos, sujeitos inalienáveis, que são reificados na enunciação, uma prática sócio-histórica no Brasil. Isso não diz respeito a todes/as/os, somente a algumas pessoas. Somente aquelas pessoas acostumadas com os privilégios históricos ou que atribuem a si e aos "seus" determinados privilégios, inclusive o de apropriação do patrimônio público, incluindo seu corpo de funcionários/as e de estudantes, em caso de escolas. Trata-se da co-fusão entre o público e o privado, apontado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil:

No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – esta em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (HOLANDA, 1995, p. 146)

As práticas sociolinguísticas revelam as posturas políticas e ideológicas dos falantes, além de guardar e revelar a socio-história da própria língua e do povo, o corpo social, a coletividade que dá vida á língua.

2) A forma seletiva da campanha eleitoral
Outro costume que me chamou a atenção, esse especificamente com relação às campanhas eleitorais da universidade em 2017, é o fato de os/as candidatos/as irem às unidades para "negociarem" votos com diretores/as e, no máximo, conversarem com o conselho diretor de cada unidade acadêmica. Como são conselhos de representação, exceto pelas unidades mais democráticas que têm conselhos plenos ou ampliados, esses conselhos são formados por uma pequena parcela de professores/as e uma ainda menor, diria até mesmo ínfima (se considerada a proporção) de estudantes. Ora, se todes/as/os docentes, no caso do sindicato, votam, e, em se tratando da reitoria, todes/as/os, docentes, discentes e TAEs, votam, por que a campanha se limita à abordagem apenas a representantes? Na Faculdade de Letras, alguns/mas dos/as candidatos/as, ao se dirigir para a sala, onde estava reunido o Conselho Diretor, ao passar por estudantes e docentes, nem mesmo  cumprimentavam, em atitude de completo descaso e desmerecimento.  

Nesse caso, também trata-se da velha prática de co-fusão entre público e privado, em que o/a diretor/a, dirigente, com os/as conselheiros/as, são os/as donos/as. O patrão, o empregador, é o procurador. Então, basta ir falar direto com “o dono dos porcos” para não perder tempo, porque "tempo é dinheiro". E, pior, revela ainda o ranço do coronelismo, do "voto de cabresto". Basta falar com o “chefe” e “fechar” com ele. Ele manda e os/as funcionários/as obedecem. Não é preciso perder tempo conversando com todo mundo. O pior de tudo é que funciona, é assim mesmo que acontece. 

A língua é reveladora das ideologias e das práticas sociais. Não é à toa que essas pessoas declaram a “nossa universidade”, a “nossa faculdade”, os “nossos alunos”, os “nossos professores” o “nosso curso”. É porque tudo isso pertence a elas, “de porteira fechada”.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Porto Alegre: Companhia das Letras, 1995, p. 146.

JORNAL OPÇÃO. Discurso de Posse de Marconi Perillo. Disponível em: . Acesso em: 22 mai. 2017.  

PINTO, Luíza Helena Nunes. (Org.). Discursos Selecionados do Presidente Juscelino Kubitschek. Brasília-DF: Fundação Alexandre Gusmão/Ministério das Relações Exteriores, 2010, p. 9.  

sábado, 13 de maio de 2017

Pré-verdades

Depois do depoimento do "Sr. Ex-Presidente" ao Juizinho de Curitiba, a  mídia - in prensa - está lançando mão de todos os recursos multimodais de comunicação e atirando pra todos os lados, sem se preocupar com que alvos estão sendo atingidos. Corre o risco, com isso, de atirar nos próprios pés ou de atirar pra cima e ser atingida na testa por suas próprias munições. Com esse joga-joga, cai em contradição com o próprio jogo de construção discursiva e de imaginário que defende, ao buscar argumentos de autoridade, impensadamente.  

Figura 1: A culpada pelo Nazismo
Na Figura 1, o argumento de autoridade mobilizado é o conhecimento de História. Para o entendimento da Figura 1, apesar de estar situada em um contexto imediato, de domínio público, é necessário conhecimento de história geral, para o estabelecimento da inter-relação. Com a atual abominação da área de História e com a histórica demonização do Nazismo, sem um adequado, contextualizado e problematizado ensino do que foi, de fato, o Nazismo, nem a construção de sentido nem, muito menos, a construção do efeito de sentido, que pretende o cartum, serão alcançados, exceto pela RHBB (República dos Homens de Bem do Brasil), da linhagem de Temer, Sarney, Marconi Perillo, Iris Rezende and so on. Somente esses conseguem rir da piada no Cartum. É piada, é para rir. Esse é o propósito do efeito de humor. A articulação entre os textos verbal e não verbal, no cartum, para a construção do efeito de humor, reflete um conhecimento ancorado em uma visão de mundo e uma epistemologia euro-branco-falo-cêntricas, que são a base ideológica que orienta o pensamento e o comportamento da RHBB. Em geral, os efeitos de humor d@s brasileir@s são sustentados por esse tipo de cosmovisão e de epistemologia.    

                                                                                                              
Figura 2: Sessão Espírita

Na Figura 2, uma "corte especial" realiza uma sessão espírita, evocando Dona Marisa Letícia, para esclarecer a questão do "triplex", pois o judiciário, conforme ficou muito claro, não dispõe de provas. A língua é traiçoeira. A língua escrita, então, é ainda mais traiçoeira. Por isso, para se construir qualquer efeito de sentido, mais importante do que dominar o "padrão culto" do "legítimo português brasileiro", é necessário dominar o funcionamento do português brasileiro. O propósito do cartum é ridicularizar com o "Sr. Ex-Presidente", mas, na realidade, ridiculariza muito mais com o Sr. Juiz, que, por absoluta falta de provas, têm de "apelar às forças do além", se quiser incriminar Lula, porque, com informações da terra, não conseguirá. É. O cartunista não me parece muito habilidoso com construção de efeito de humor no "português da gente". Além disso, e o que me pareceu mais grave, é que o cartum, também ancorado na ideologia da RHBB, de base, agora ampliada, cristã-euro-branco-falo-cêntricas, desrespeita e ridiculariza as religiões que acreditam na vida ou em energias de vida após a morte. Esse cartum (Figura 2), portanto, considerando o disposto na Constituição de 1988, acerca do "respeito ao credo" dos cidadãos e das cidadãs, chega a ser criminoso. Por isso, você, que se gaba de ter o maior cuidado antes de curtir e de compartilhar qualquer coisa na internet, verificando sempre a confiabilidade das fontes e das informações, passe a ter cuidado também com a ética dos sentidos e dos efeitos de sentidos das informações. Para além dos sentidos construídos, reflita se os efeitos de sentidos não estão causando algum tipo de constrangimento, desconforto, sofrimento etc. 

Segundo especialistas, ex-presidente demonstra raiva, ansiedade e contradições. 

A estratégia do jornal O Globo, para a construção de uma imagem de seriedade, é o argumento de autoridade científica. O jornal convoca especialistas para fazer a leitura corporal do "Ex-Presidente" e emitir um "parecer". Quem conhece Lula de entrevistas e pronunciamentos na TV, de palcos e palanques, e o viu no depoimento, sabe que ele manteve a mesma expressão corporal e facial de sempre. Lula não tem a expressão contida e serena dos ocidentais educados na Europa ou nos "bons" colégios religiosos do litoral do sul e do sudeste do Brasil. Nunca teve dinheiro para tanto. Não é hipócrita nem fingido. Seu timbre de voz é alto e forte, sempre foi. Ele fala com o corpo, sempre foi assim. Todas as pessoas que falam com o corpo e têm o timbre de voz alto e forte são interpretadas como pessoas mal educadas, brutas, sem modos; ou como nervosas, ansiosas, agressivas... Esse molde já está pronto, é só encaixar. Por outro lado, essas pessoas passam uma mensagem ao seu interlocutor: "não é com pouca coisa que você vai conseguir me enrolar, cabra!" Isso assusta. Lula foge ao padrão. Isso assusta. Os especialistas precisam explicar para dar credibilidade, porque as piadas, que tanto agradam aos brasileiros, não estão conseguindo fazer o serviço. 

O que é que tudo isso mostra: DESESPERO! Não precisamos ajustar a bússola.