O emprego dos possessivos e a reencarnação de Antígona
As escolhas que fazemos em nossas performances linguísticas, consciente ou
inconscientemente, mais ou menos cuidadosamente, na edição das narrativas que
compomos, na vida cotidiana, revelam as epistemologias, as teorias, as
ideologias e os valores que nos situam e nos guiam no mundo. Nossas práticas são tão
naturalizadas, que (re)agimos no mundo, conforme as situações, os/as interlocutores/as, movides/as/os e motivades/as/os pelas circunstâncias e, raramente,
prestamos atenção às razões, pelas quais (re)agimos, da maneira que (re)agimos
e por que fazemos as escolhas que fazemos.
Uma reação muito naturalizada é o
julgamento de/a/o outre/a/o, não raro um ativador de prejulgamentos e demonizações,
principalmente de diferentes, que nada mais são do que nossa imagem refratada
no espelho da realidade. Por que julgamos tanto? Por que temos tanta
necessidade de julgar? Julgamos nossa própria imagem, nosso julgamento é a projeção de nós mesmes/as/os em outres/as/os. Talvez seja um mecanismo de autodefesa,
talvez, vai-se saber.
Outra prática corriqueira, correlacionada
à anterior, é a auto-martirização (personalização/individualização) – o ato de
nos colocarmos, sempre, no centro do universo, para atrair atenção, para sorrir ou para chorar. Ultimamente, está praticamente impossível
desenvolver qualquer tipo de discussão ou de propor e desenvolver qualquer ação
coletiva, porque toda manifestação - política, social, coletiva - é arrastada
para o pessoal, individual, que, em geral, sofre muito com a
demanda (ação ou denúncia) e, assim, atrai para si a compaixão e a comiseração
coletiva, ao mesmo tempo em que leva a (pre)julgamento a pessoa que demanda a ação ou
proposta política coletiva, demonizando-a, conseguindo pôr fim à discussão,
ação ou denúncia. Perde a coletividade, ganha o "sistema-mundo".
As práticas mencionadas nos parágrafos
precedentes revelam estratégias antigas, empregadas para pôr em combate e em disputa forças iguais, as dominadas, que precisam ser controladas, enquanto as forças dominantes seguem com seus projetos perversos. Ai de quem tentar abrir os olhos
da coletividade para esse fato, "não vai ter perdão!" Para se
construir essas narrativas, que considero perversas e sustentadoras da
colonialidade, são feitas edições e seleções sociolinguísticas, muitas vezes,
tão naturalizadas e tão “simpáticas”, “afetuosas”, que nem percebemos. Correndo
todos os riscos da demonização, é disso que quero tratar neste
texto.
Há algum tempo, venho observando na
Universidade o comportamento sociolinguístico das pessoas que fazem falas
públicas e o que suas práticas sociolinguísticas revelam de suas condutas
ideológicas e políticas. Neste ano, nas campanhas eleitorais, na Universidade,
passei a observar o comportamento dos/as candidatos/as, sobretudo daqueles que
considero carreiristas, os que pulam de cargo em cargo, para depreender o que
suas práticas sociolinguísticas podem mostrar a seu respeito. Não foge
muito do que vi antes. Há, na postura política dessas pessoas, revelada em suas
práticas sociolinguísticas, a co-fusão entre público e privado e
o velho costume da apropriação do bem público. Essas práticas podem
ser vistas 1) no uso do pronome possessivo, em correlação com 2) a forma
seletiva da campanha eleitoral.
1) O uso do possessivo
É muito comum pessoas públicas, em geral,
empregarem o pronome possessivo, em referência a bens que não lhes pertencem,
principalmente, o patrimônio público, como em: “Não duvidamos, mesmo nas horas
mais difíceis, que o nosso país já estivesse amadurecido
suficientemente para que as regras e fundamentos da moral e do direito
resistissem a tôda sorte de desregramentos da paixão” (Juscelino Kubitschek,
1956). Em 1 de janeiro de 2015, o Governador de Goiás, Marconi Perillo, iniciou
seu discurso de posse, citando versos de Cora Coralina e, na sequência,
afirmou: “No passado, alguns
movimentos foram decisivos para a formação de nossa sociedade e
para assegurar a consolidação de nosso Estado como um dos
mais pulsantes e desenvolvidos do Brasil”. [...] “Os bandeirantes vieram de
fora para buscar a integração do nosso território a um projeto
nacional” (Jornal Opção).
O emprego do possessivo,
nos contextos e funções apresentados, se popularizou nas falas públicas, de
modo geral. As pessoas que trabalham nas secretarias de estados e municípios,
por exemplo, com assistência social aos idosos, se referem a estes como
“os meus idosos”; as que trabalham com crianças dizem
“as minhas crianças”; os profissionais da educação, que atuam
em uma determinada escola, e também com relação a estudantes, dizem “a minha escola”, "nossos alunos".
Da mesma forma, gestores/as responsável pela escola: “a nossa escola”,
“os nossos professores”, “os nossos alunos”.
Há um sentimento de apropriação naturalizada do bem público, das pessoas e dos
corpos, refletida nas práticas sociolinguísticas. Há um consenso de que
esse emprego do possessivo é uma estratégia de
aproximação com os interlocutores e uma forma de conferir aproximação e
afetividade com o "objeto possuído", que não é posse (ou pelo menos
não deveria ser) de ninguém, a não ser do povo, exceto pelas pessoas.
O pronome possessivo é possessivo porque
sua função prototípica é justamente indicar posse. Ainda que ele seja usado
para promover outros efeitos de sentido, sua função prototípica é somente
enfraquecida, mas nunca totalmente esvaziada. Então, quando a pessoa diz “nossa
faculdade”, “nossos professores” e “nossos alunos”, ela está revelando seu
sentimento de posse sobre a faculdade, um bem público, e sobre os professores e
os alunos, sujeitos inalienáveis, que são reificados na enunciação, uma prática
sócio-histórica no Brasil. Isso não diz respeito a todes/as/os, somente a algumas pessoas.
Somente aquelas pessoas acostumadas com os privilégios históricos ou que
atribuem a si e aos "seus" determinados privilégios, inclusive o de
apropriação do patrimônio público, incluindo seu corpo de funcionários/as e de
estudantes, em caso de escolas. Trata-se da co-fusão entre o
público e o privado, apontado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do
Brasil:
No Brasil, pode dizer-se que só
excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários
puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao
contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em
círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses
círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e
desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia
incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos
chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – esta em que
as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo
obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as
instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos,
pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (HOLANDA, 1995,
p. 146)
As práticas sociolinguísticas revelam as
posturas políticas e ideológicas dos falantes, além de guardar e revelar a
socio-história da própria língua e do povo, o corpo social, a coletividade que
dá vida á língua.
2) A forma seletiva da campanha
eleitoral
Outro costume que me chamou a atenção,
esse especificamente com relação às campanhas eleitorais da universidade em 2017, é o fato de os/as candidatos/as irem às unidades para "negociarem" votos com diretores/as e, no máximo, conversarem com o conselho diretor de cada unidade acadêmica. Como são conselhos de
representação, exceto pelas unidades mais democráticas que têm conselhos plenos
ou ampliados, esses conselhos são formados por uma pequena parcela de professores/as e uma ainda menor, diria até mesmo ínfima (se considerada a proporção) de
estudantes. Ora, se todes/as/os docentes, no caso do sindicato, votam, e, em
se tratando da reitoria, todes/as/os, docentes, discentes e TAEs, votam, por que a
campanha se limita à abordagem apenas a representantes? Na Faculdade de Letras, alguns/mas dos/as candidatos/as, ao se dirigir para a sala, onde estava reunido o Conselho Diretor,
ao passar por estudantes e docentes, nem mesmo cumprimentavam,
em atitude de completo descaso e desmerecimento.
Nesse caso, também trata-se da velha
prática de co-fusão entre público e privado, em que o/a diretor/a, dirigente, com os/as conselheiros/as, são os/as donos/as. O patrão, o empregador, é o
procurador. Então, basta ir falar direto com “o dono dos porcos” para
não perder tempo, porque "tempo é dinheiro". E, pior, revela
ainda o ranço do coronelismo, do "voto de cabresto". Basta falar com
o “chefe” e “fechar” com ele. Ele manda e os/as funcionários/as obedecem. Não é
preciso perder tempo conversando com todo mundo. O pior de tudo é que funciona, é assim mesmo que acontece.
A língua é reveladora das
ideologias e das práticas sociais. Não é à toa que essas pessoas declaram a
“nossa universidade”, a “nossa faculdade”, os “nossos alunos”, os “nossos
professores” o “nosso curso”. É porque tudo isso pertence a elas, “de porteira
fechada”.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes
do Brasil. Porto Alegre: Companhia das Letras, 1995, p. 146.
JORNAL OPÇÃO. Discurso de Posse de
Marconi Perillo. Disponível em: .
Acesso em: 22 mai. 2017.
PINTO, Luíza Helena Nunes.
(Org.). Discursos Selecionados do Presidente Juscelino Kubitschek. Brasília-DF:
Fundação Alexandre Gusmão/Ministério das Relações Exteriores, 2010, p. 9.
Interessante análise dos possessivos. Até na citação de Sérgio Buarque de Holanda eles aparecem em profusão! Mas há a possibilidade de sobrepormos aos sentidos de "posse" também os sentidos de "pertencimento". Quando falamos de "nossa história"; "nossa sociedade"; "nossa família"; "nossos irmãos" etc me parece que a pertença ao grupo, à mesma história, à mesma sociedade se sobrepõe ao sentido de posse! Seria um purismo anti-bakhtiniano não perceber que as palavras reconhecidas como tais recebem um tema a cada enunciação, de modo que o feixe de sentidos que carregam em sua história nem sempre se organiza da mesma forma, ora é mais relevante um aspecto, ora outro deste feixe. Do contrário, a língua não funcionaria... Daí a necessidade de incorporar nos estudos linguísticos a noção de indeterminação dos recursos linguísticos em quanto tais para que ele possam ser determinados no discurso. Se a determinação lhe é anterior, então não teremos mais uma língua, mas um código! João Wanderley Geraldi
ResponderExcluir