sábado, 19 de março de 2016

Em terra de macho, toda mulher tem de ter o grelo duro, é uma questão de sobrevivência

En Abya Ayala, las venas abiertas pulsan, em Pindorama abrasada, la sangre cubre los colores todos, os corpos tremem e eu he llorado o choro e he lutado la lucha de las madres de grelo duro
Ando em silêncio, há dias, somente me defendendo, quando sou agredida, mas em silêncio, observando, pensando, refletindo, pensando muito. Não tenho problemas em assumir meus erros, em assumir que sou incoerente, afinal, estamos no mundo de passagem e para aprender. A vida é uma aprendizagem. Respeito as opiniões, as decisões e as escolhas, desde que sou respeitada. Gosto do debate, do diálogo e das trocas, somos incompletos/as e as conversas, às vezes, nos completam. Ultimamente, entretanto, me sinto participando da montagem de um quebra-cabeças e sinto que muitas peças não se encaixam. Isso é bom, desafia minhas estratégias de leitura e de interpretação do comportamento sociolinguístico brasileiro. Por exemplo, não me convence a bandeira do combate à corrupção, porque quem está à frente do movimento, empunhando essa bandeira são lideranças políticas muito corruptas, sabemos disso. As classes sociais que compraram essa briga são as que sempre se beneficiaram da cultura da corrupção. Há muita hipocrisia no ar, não dá pra não ver. Essa bandeira é falsa. Essa gente nunca se preocupou com o Brasil, só se preocupa com seus próprios interesses.
Enfim, observei bem as manifestações do dia 13 de março, como pesquisadora social que sou, como cientista social que sou. Nesse 18 de março, fiz o mesmo e minha atenção foi para a Praça Cívica, em Goiânia, além do cenário nacional. Na Praça Cívica, ao contrário de quem se manifestava em defesa da democracia e ao contrário de quem se manifestava contra a corrupção, meu olhar e minha escuta eram da observadora que queria ter certeza do que já vinha desconfiando. Apesar disso, nem em meus mais lunáticos delírios conspiratórios eu imaginaria que iria presenciar o que aconteceu rapidamente ali, no santuário da administração do estado de Goiás: o centro administrativo, o entorno da Praça Cívica, foi cercado por caminhões de manifestantes “contrários à corrupção no governo federal”, para impedir que os manifestantes em “defesa da democracia” tomassem a Praça Cívica. Isso não aconteceu, com a mesma proporção, no dia 13 de março.
Minha interpretação (afetada e subjetiva, não tenho a intenção de ser hipócrita) dos fatos confirma minhas desconfianças. Se essas pessoas são contrárias às corrupções e o governo de Goiás está envolto em escândalos e denúncias de corrupção, não seria o caso de aproveitarem o momento para fazerem um movimento só? Por que serem contrários somente às corrupções do governo federal? Só as corrupções do PT são criminosas? Outra coisa que me chamou a atenção foi o comportamento das pessoas: os manifestantes que “defendiam” a Praça Cívica” se comportavam como verdadeiros “capangas” de coronéis, autoritários, grossos, sem educação, "donos do pedaço". Ou seja, o governador de Goiás representa muito do povo de Goiás. Que choque! Percebi ali a consciência popular do geopoder constituído. Ouvi várias vezes as pessoas dizerem: “se quiserem fazer bagunça e apoiar esse governo corrupto vão fazer isso na Praça Universitária ou na Praça da Bíblia, que é lugar de baderneiro e de pobre”.  Em Goiânia, a Praça Cívica, o Marista, o Bueno, o Oeste e outros lugares por ali, são espaços reservados para os defensores “da moral” e dos “bons costumes”, aqueles/as que saem pras ruas “contra a corrupção”, embora se beneficiem todos os dias da cultura da corrupção. Mas, eles/elas podem, afinal, o Brasil sempre foi deles/delas, por isso, querem o “Brasil de volta”. A Praça da Bíblia e suas imediações é lugar da gente pobre; a Praça Universitária e suas imediações é o espaço dos/as baderneiros/as, estudantes e professores/as, os/as espancados/as pelas autoridades policiais em nome da ordem.
Assistindo a tudo isso e refletindo historicamente sobre a formação do Brasil e sobre a construção de Goiânia, pensando no mapa de Goiânia, me veio à cabeça o último relatório sobre o mapa da fome no planeta e em como o Brasil conseguiu em poucos anos tirar da fome e da miséria muita gente. Vejam bem, estou falando de fome. Pensando em direitos humanos, pensando que no dia 13 de março, as classes sociais que já nasceram com foro privilegiado, foram às ruas, simplesmente porque “é melhor do que ficar em casa reclamando”, e tiveram o direito de se manifestar onde quiseram, como quiseram; e que nesse 18 de março, houve clara interdição de espaço de manifestação, porque aqui “no meu espaço, pobre e baderneiro não se cria”. 
Depois de ontem, eu não tenho mais dúvida, tudo o que está acontecendo no Brasil é uma forma de os/as herdeiros/as das capitanias hereditárias colocarem os/as “bastardos/as no seu lugar” e, claro, “pegarem o Brasil de volta”. Esse é o sentido histórico do "queremos o Brasil de volta". Eles/elas são tão descarados/as e subestimam tanto a capacidade de entendimento do/a brasileiro/a ou contam tanto com a ignorância do/a brasileiro/a que deixam suas intenções muito às claras. Nem disfarçam, não precisam.  E, claro, têm os “pés-rapados”, que ficam atrás, fazendo coro, acreditando piamente que sabem o que estão fazendo, afinal, “quem não puxa-saco, puxa-carroça” ou “é melhor ir pra rua do que ficar em casa reclamando”, são os parcos argumentos dos/as alienados/as, que ficam desesperadamente catando migalhas, na ilusão classista de que participam do banquete, sem querer enxergar o fato cruel de que nunca farão parte do banquete.
 Vendo tudo isso, a real ameaça às perdas de conquistas históricas das classes sempre injustiçadas (e a maior prova disso é a forma como os reacionários tentam jogar as minorias contra o governo), eu ontem chorei. Eu ontem chorei de indignação, de humilhação, de decepção. Não por nomes ou siglas, pouco me importam as pessoas e seus partidos. Eu ontem chorei o choro coletivo e histórico, o choro de sangue que escorre nas veias ainda abertas da América Latina e do Brasil por mais de 500 anos. Eu ontem, diante dos/as herdeiros/as dos/as assassinos/as, todos homens de bem, sustentados por alguma mulher de grelo duro, chorei pelo sangue dos meus ancestrais assassinados por mais de 500 anos.
Eu sou sim, e assumo, a mulher negra, pobre, estuprada e explorada; a bisneta, a neta e a filha dos negros e dos índios assassinados, a que ficou órfã, sem terra, sem teto e sem comida. Eu sou sim a mulher do grelo duro, que cria e que sustenta sozinha a filha do homem branco de bem (hetero, cristão, empresário, casado, maçom, bem vestido, bem calçado, falante de português padrão, com curso superior completo etc), porque em terra de macho, toda mulher, feminista ou não, tem o grelo duro, é uma questão de sobrevivência.