ARIEL FEITOSA V. SERAFIM
Primeira carta: O primeiro contato
Goiânia, 20 de
fevereiro de 2010.
Cara professora
Helena:
Bom
dia! Meu nome é Maria Aparecida de Andrade, tenho 10 anos e estou no quinto ano
C. Essa carta é minha tarefa de casa para a próxima aula. A senhora pediu pra
gente escrever sobre um momento legal com a nossa família, mas não sei se
entendi direitinho o tema. Eu poderia falar sobre o último Natal, que foi bem
divertido e eu ganhei um MONTE de presentes, mas a Duda e a Bia já vão falar
sobre o Natal delas, e a senhora disse que tem que ser um momento especial na
vida de cada um, então eu acho bem errado todo mundo fazer a cartinha igual. O
momento especial que eu escolhi foi quando eu, meus pais, meu tio Joaquim e
minha tia Nana, e o vovô e a vovó fomos à praia durante as férias do ano
passado. A gente foi pra Salvador! Ficou num hotel muito chique e passou quase
o dia todo numa praia lá perto que se chama Farol da Barra. Eu não sabia que
praias tinham nome, a senhora sabia? Elas têm! E são nomes muito criativos,
tipo Farol da Barra. Na praia, a gente tomou sorvete, comeu um monte de batata
frita e peixe e ficou todo bronzeado por causa do Sol quente, a senhora
acredita? Eu fiquei moreninha. Depois, eu fiquei com muito medo de entrar no
mar, porque meu pai disse que lá tem peixe e em algumas partes é bem fundo
mesmo e eu não sei nadar. Meu tio Joaquim que me levou no colo lá pra dentro da
água. Ele é meu tio preferido! sempre é bonzinho comigo, me leva para o cinema
e me dá vários presentes, e mesmo não morando em Goiânia com a gente, ele
sempre nos visita e diz que foi lá só “pra ver a sobrinha preferida dele” que
sou eu. Quando a gente estava dentro da água, eu tinha que segurar bem forte no
pescoço do tio Joaquim por causa das ondas. Foi muito legal e agente riu muito!
Teve só uma parte meio ruim quando veio uma onda muito grande e forte mesmo e
levou a minha calcinha do biquíni. O tio riu de mim, mas mesmo assim disse que
não tinha problema e continuou me segurando no colo. Quando a gente saiu da
água a minha mãe brigou até comigo e me fez passar o resto do dia enrolada numa
toalha perto dela. Foi um saco! Nos outros dias a minha mãe me fez usar maiô e
ele era todo lindo, branco com um monte de flores rosa. Entrei no mar de novo, às
vezes com o papai, às vezes com o tio Joaquim e às vezes com o vovô e a vovó. Quando
a gente foi embora foi muito ruim, porque os tios tiveram que ir mais cedo e
minha vó estava passando mal. No carro, voltando pra Goiânia, a mamãe colocou
pra tocar todas as minhas músicas preferidas e ela e o papai cantaram todas
comigo. A mamãe até chorou na música “Cinco patinhos” da Xuxa, eu ri muito
porque isso foi muito bobo! chegamos em casa só de noite. Essas férias foram um
momento especial com a minha família, já que foi a primeira vez que eu vi o
mar.
Até
mais. Um abraço, da sua aluna
Maria
Aparecida de Andrade.
Segunda carta: Aluna preferida.
Goiânia,
11 de julho de 2018.
Cara...
eu,
Encontrei
por acaso a carta que escrevi no quinto ano para a professora Helena, estava
guardada numa caixa com vários outros papéis que a mamãe me mandou jogar fora.
Resolvi dar uma olhadinha pra ver se não estava jogando nada importante no lixo
e por acaso encontrei a tal carta. Acho que vou guarda-la. Sobre a viagem para
a praia que eu falo, acho necessário esclarecer algumas coisas. O Joaquim, meu
tio, não é um homem bom. Nunca foi. Minha mãe encontrou a minha calcinha na
mala dele alguns dias depois, e quando o confrontou sobre aquilo ele não soube
explicar, mas a tia Nana sim. Ela contou para mamãe sobre as preferências
sexuais do marido. Desesperada, ela explicou que há muito tempo já tinha suas
suspeitas, tendo já flagrado o marido consumindo pornografia de meninas muito
novas e outra vez ter encontrado peças infantis no armário do Joaquim.
Aparentemente a tia Nana não fez nada na época porque não achou que aquilo
realmente significasse alguma coisa, pensou que era algo insignificante e devia
ser normal para um homem que estava envelhecendo querer mulheres mais novas.
Ela até se sentiu mal, achou que era sua culpa por estar ficando velha e fora
de forma o marido estar indo atrás desse tipo de conteúdo. Eu sei que esses
argumentos não fazem sentido e que muito provavelmente o amor pelo Joaquim a
cegou. Desde aquela viagem eu nunca mais vi meus tios. A mamãe me contou sobre
aquele dia quando eu comecei a insistir para ir os visitar alguns anos atrás.
Eles eram os nossos parentes mais próximos então foi normal eu sentir falta.
Lembro até hoje de como ela me contou, entre lágrimas e soluços e segurando a
minha mão muito forte. Na hora eu não soube como reagir, afinal sequer me
lembrava de ter “perdido” meu biquíni no mar. Fiquei em choque, depois com raiva
dos meus pais por terem me permitido entrar no mar com aquele homem, depois com
ódio da minha tia por ter sido uma completa imbecil e não o ter denunciado
antes e por fim, uma cólera e aversão indescritível para com aquele homem. De
um minuto para outro eu me tornei vítima de assédio e abuso e só Deus sabe mais
o que aquele homem fez nas inúmeras vezes que esteve a sós comigo. Eu me senti
suja, me senti incapaz e vulnerável, me senti totalmente perdida e infeliz. Eu
só tinha dez anos quando um homem se achou dono do meu corpo. Mesmo tendo
começado a ir à terapia demorou muito para que eu perdoasse meus pais e a minha
tia e parasse de culpá-los. Eu nunca perdoei meu tio. Hoje, estou no terceiro
ano do ensino médio e tenho dezoito anos. Estou escrevendo porque está
acontecendo de novo. Tenho um professor chamado Lucas e ele dá aula de história
para a minha turma desde o primeiro ano. E desde aquele tempo ele sempre disse
que eu era a sua aluna preferida. No
início, eu achava que ele falava isso por eu tirar notas altas e participar da
aula. Achava que os abraços nos corredores e os olhares carinhosos na sala eram
normais já que ele era assim com outras garotas, talvez fosse só o jeito dele.
Porém, semana passada as coisas mudaram. Entrei na sala mais cedo no primeiro
horário para guardar lugar e o Lucas já estava lá corrigindo algumas provas. O
cumprimentei e começamos a conversar. Ele fazia piada sobre a resposta que um
aluno tinha escrito na prova e me chamou para ver. Aproximei-me e fiquei em pé
ao seu lado. Lucas apontou para uma questão e comecei a ler. Ele colocou uma das
mãos nas minhas costas e começou a me acariciar. Na mesma hora olhei para ele
assustada o que o fez rir. Levantou as mãos como quem diz “sou inocente” e
falou entre risos “O que foi Maria? não gosta de carinho?”. Eu ri nervosamente
e disse que não era isso, só não estava esperando e tinha me assustado. Comecei
a suar frio e engoli em seco. Voltei a ler para acabar com aquilo rápido e ele
colocou a mão nas minhas costas de novo. Mas dessa vez ele não se demorou muito
lá e a abaixou. Estava com a mão na minha bunda e eu estava petrificada. Ele a
apertou e eu quase vomitei. O encarei perplexa. “Você gosta Maria? olha, eu
gosto muito de você. É minha aluna preferida. Se você quiser, mais tarde a
gente pode sair daqui e...” nesse momento uma amiga entrou na sala. Ela não
notou nada, pois ele tirou a mão rapidamente. Saí de perto dele e fui me sentar
na minha cadeira ao lado dela. Ela falava sobre o fim de semana e eu apenas
fiquei quieta, de vez em quando olhava pra ele. Eu não conseguia acreditar no
que tinha acontecido. Ainda não acredito. Lucas tinha me tocado. O meu
professor de história tinha me tocado. O homem que tanto me elogiara tinha me
assediado. E eu não fiz nada. Um homem adulto colocou a mão em mim e eu... Deixei?
Minhas mãos começaram a tremer e olhei para ele de novo. Ele olhou de volta,
piscou para mim e voltou a corrigir as provas com um sorriso no rosto. Nada
daquilo parecia real para mim. Eu estava vivendo um pesadelo. Olhei fixamente
para a minha amiga esperando que ela entendesse toda a situação e fizesse algo
a respeito. Queria que ela começasse a
gritar, a fazer um escândalo, que ela saísse de onde estava e estapeasse com
todas as forças o Lucas. Mas ela não fez isso, ela não tinha como saber. Eu
sabia e não fiz nada. Senti meus olhos encherem de lágrimas e fui ao banheiro. Olhei-me
no espelho e vi uma garota pálida e assustada com tamanho horror. Entrei em um
box e me permitir chorar finalmente. Chorei silenciosamente durante todo o dia,
tremendo e com falta de ar até o final da aula, quando me permitir saí do
banheiro e depois da escola. Resolvi ir andando até em casa. Não falei sobre o
caso para ninguém porque dessa vez eu sei que a culpa é minha. Eu poderia ter
desencorajado as investidas dele desde o primeiro ano, eu deveria ter sido mais
inteligente e sacado tudo a tempo, quantas vezes já não tinha pensado sobre
como reagiria se caso algo parecido como o que Joaquim fez se repetisse. Mas eu
não fiz nada. Dessa vez, eu nunca me perdoaria... Nem eu e nem as outras
pessoas.
Terceira carta: Mas você é mulher.
Cara
eu,
Não
quero me demorar nisso, pois estou escrevendo no intervalo do almoço do
trabalho e estou cansada. O motivo porque escrevo agora é bem simples: Lucas
está sendo acusado de estupro. Aquele mesmo Lucas que me assediou quando eu
ainda estava no colégio. Agora, estou no último período da faculdade, já
trabalho num jornal, e o homem que me assediou há quatro anos, estuprou uma
garota. Não vou fingir que isso não me afeta. Se na época eu tivesse denunciado
ou contado para outra pessoa talvez ele já estivesse preso. Mas eu não fiz
nada. A culpa é minha? A culpa é da Maria Aparecida de quatro anos atrás? O que
eu sei, é que trabalho no jornal que irá publicar a notícia. A minha equipe irá
redigir palavra por palavra a história do mais novo estuprador da cidade. É
interessante pensar que eu poderia ser uma das entrevistadas. Mas elas tiveram
coragem pra falar, meu deus, elas tiveram coragem pra falar para a PORRA DE UM
JORNAL e eu sequer me abri para a minha mãe. Todo santo dia escrevo e leio
sobre mulheres sofrendo algum tipo de opressão, sei que infelizmente homens
como o Lucas existem em maior número do que poderia imaginar. Eu tenho medo.
Medo deles. Medo de andar na rua de noite e me deparar com uma versão do
Joaquim. Medo de começar a namorar e descobrir que o cara que eu amo assedia
meninas. Em quem eu posso confiar? Nem
nos homens que eu escolho conviver diariamente posso colocar fé. Ah, esse é
outro assunto interessante, sabe. Porque não bastando eles quererem serem donos
do meu corpo, querem ser donos do meu trabalho... Talvez da minha vida. Aqui no
serviço homem ruim é o que não falta. “Maria, você é muito bonita, não precisa trabalhar.
Consegue qualquer cara rico pra te bancar em dois segundos”, “Maria, você quer
mesmo tentar essa vaga? eu sei que é uma posição melhor e mais remunerada... mas
você é mulher... como fica o trabalho se tiver um filho?”, “Maria, esta fazendo
escândalo demais, por acaso esta na TPM?”, “Maria, eu tenho percebido uns
olhares lá no escritório e acho também que eu e você temos muita química. O que
a gente pode ter iria beneficiar nós dois, entende? eu falo bem de você pro
chefe e te recomendo, e você... bem...”, “Maria, cadê o trabalho que você ficou
de entregar?! meu deus, não dá mesmo pra confiar esse tipo de serviço pra uma
mulher, exige demais delas.”, “Maria, por que vocês mulheres são tão
dramáticas? foi só uma cantada! você nem é isso tudo.” Dramática. Louca.
Descontrolada. Histérica. Cadê a sensibilidade feminina? o espírito maternal?
ah mas não me diga que você é feminista. Porra, Maria! É histérico demais da
minha parte dizer que estou de saco cheio disso? Não estou pedindo demais. Só
quero trabalhar sem me perguntarem sobre meus filhos que ainda nem nasceram,
sem que olhem pro meu corpo e queiram ele em vez da minha inteligência, quero
poder andar na rua sem me preocupar se terá alguém na esquina me esperando, sem
ter que me culpar por uma saia muito curta, por um biquíni que se perdeu com a
força do mar ou porque não tive força pra dizer não quando eu nem deveria ter estado
naquela situação. Eu quero ter os direitos que um homem tem, quero trabalhar em
paz, quero amar em paz e quero viver em paz. Eu não estou pedindo muito, estou?
Quinta carta: Eis me aqui.
Goiânia,19
de maio de 2025
Querida
eu,
Estou
escrevendo na verdade esperando que haja uma resposta no meio destas palavras.
Ele me espancou outro dia. Não foi a primeira vez que algo assim acontece, mas é
a primeira que eu reajo. Neste exato
momento, estou sentada no banco do carro estacionado em frente a uma delegacia.
Quero correr, quero jogar esse lápis fora, amassar esse papel, sair no meio da
chuva e ir andando até o meu prédio. Quero subir as escadas até o último andar.
Quero estar no terraço, sentir o vento e as gotas se lançarem suavemente contra
o meu rosto acariciando o lugar onde ele fez estalar o cinto. Quero olhar para
a Lua e gritar o que ele fez comigo. Quero olhar para a rua lá embaixo e sentir
que tenho o poder de escolher o meu próximo passo. Eu não quero entrar na
delegacia, olhar para outra pessoa e falar em voz alta o que aconteceu. E se
eles não acreditarem em mim? E se eles
não fizerem nada? E se isso só o irritar mais? Louca. Dramática. Descontrolada.
Histérica.
Sexta carta: É isso?
Goiânia,
10 de dezembro de 2030.
Querida
eu,
O dia
está bom. Sopra um vento frio que me acalma e contrasta com a fraca luz que o
Sol já emite a essa hora. O parque não é tão movimentado de manhã então eu
tenho a impressão que estou sozinha com tudo aqui. Vejo pássaros grandes e
brancos de pernas longas sob pedras no meio do lago. Observo distante o topo de
prédios que cercam o lugar, com suas bases escondidas atrás das densas árvores.
Quando me aproximei do lago, consegui ver o meu reflexo na água límpida e
brilhante. A mulher que vi deu um pequeno sorriso de volta para mim. Sentada
nesse banco enquanto aprecio a beleza desse sutil fragmento da natureza... Eu
me sinto na obrigação de escrever pra você, pra mim. As coisas mudaram e eu sou
eternamente grata por isso. É anormal eu ser grata a... mim mesma? Porque eu
sou. Olho agora o que estou vivendo e é simplesmente inacreditável. “Não,
nenhuma palavra expressa à ternura em sua essência e expressão, tudo que eu
disser se reduzirá a uma pálida reprodução”. Goethe. Eu não poderia explicar
melhor.
Sétima carta: “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só;
far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante
dele.”.
Goiânia, 5 de janeiro de 2046.
Cara eu,
Acho que me devo isso, essa carta. Esta não é uma
daquelas cartas em que eu te explico quão minha vida melhorou desde minha
última vez que escrevi para cá. Ela melhorou, mas essa não é a questão. Eu
preciso te dizer que fui uma das mulheres sorteadas para ter a vida marcada por
homens. Estou batendo demais nessa tecla? Desculpe, não é a minha intenção.
Digo, não é como se eu fizesse de propósito. Enfim.
Eu conheci outras pessoas que sofreram nas mãos
de outras pessoas, e então ficou mais fácil seguir em frente. Engraçado pensar
que a dor une. Ela une. Você escuta alguém te dizer que “Esta tudo bem, pode
chorar. Eu já vivi isso, e passa.” e é como se tivesse vivido a vida toda sob a
sombra escura e fria de algo que você nem conseguia saber o que era e do nada
alguém te puxasse pra luz, pro calor, pro Sol. E agora você é vista. Agora, as
pessoas te olham como se você tivesse luz própria. Você pode chorar esta tudo
bem. Não precisa ter medo. Eu sei que é difícil. Eu reconheço a sua dor. Chega
a ser esquisito pensar que algum dia eu realmente acreditei que tivesse que
passar por tudo aquilo sozinha, na verdade, é extremamente esquisito pensar que
eu acreditei que tinha que passar por o que eu passei. Eu fiz a denúncia,
aquele dia. Nunca mais o vi.
Por um tempo, fiz questão de estar sozinha, de
compreender tudo o que me afligia. Eu me reconheci, finalmente. Entender o que
estava ao meu redor e dentro de mim me fez temer o futuro. Olhei fixamente para
tudo que um dia já me causou dor e isso quase me matou. Mas eu não estava só,
nunca estive. Eu tinha diante de mim uma mão estendida pronta para me apoiar. Eu
estou feliz porque agora eu me tenho, eu sou minha como eu nunca fui.