sábado, 5 de maio de 2018

A perversa fragilidade humana


O ser humano é constituído de paradoxos: o poder e a fragilidade do/a branco/a é a branquitude; o poder e a fragilidade do homem é a masculinidade; o poder e a fragilidade do rico é o dinheiro; o poder e a fragilidade do/a belo/a é a beleza; e por aí vai. Diante da fragilidade do poder e da necessidade de poder do/a frágil, vem a insegurança que leva à maldade, à perversidade. Os paradoxos do ser humano refletem, de certa forma, a permanência da sua animalidade, no sentido de que, quando se sente ameaçado/a, reage e ataca! Não quero com isso dizer que a crueldade é uma exclusividade dos animais não humanos e a bondade é própria de humanos. Longe disso. O ser humano é capaz das mais sofisticadas ações de crueldade, que nenhum animal não humano seria capaz. É sua capacidade de reagir, mais do que de agir, que mostra sua animalidade. Não quero também tecer explicações psicanalíticas euro-centradas para justificar ações humanas perversas. Pelo contrário, quero chamar a atenção para a conveniência da capacidade humana de articular seus trânsitos entre a humanidade e a não humanidade, sempre com a intenção de destruir o/a “outro/a”, que é visto pelo “eu” como seu negativo (como na fotografia). Atualmente, vivemos crises profundas de valores existenciais e de deslocamentos de lugares, em que homens e mulheres, brancos e pretos, ricos e pobres, o belo e o feio etc. circulam pelos mesmos espaços, com os mesmos direitos, mas, nem sempre, com a mesma aceitação nem com os mesmos privilégios. Com isso, acirraram-se as tensões e aumentaram as situações revoltantes de injustiças por distinção, discriminação e preconceito. Duas situações idênticas ou semelhantes, envolvendo pessoas diferentes (um/uma rico/a e um/uma pobre, uma mulher e um homem, uma pessoa negra e uma pessoa branca, uma mulher negra e um homem branco) produzem reações e avaliações distintas e são tratadas diferentemente. Apesar disso, as pessoas, privilegiadas pela cor, gênero e classe, nunca reconhecem sua distinção e seus privilégios e, para não reconhecer seus preconceitos, culpabilizam suas vítimas, apoiadas em justificativas típicas da histórica discriminação racial/social/cultural. O/A “outro/a”, o anverso do “eu”, é a refração no espelho, que, ao invés de refletir a imagem bem comportada da pessoa de bem, que o “eu” quer (e acredita) ser, reflete o “monstro” (o negativo da fotografia) que está escondido a sete chaves ou que se quer se tinha consciência que existia. Ao tomar consciência da existência do monstro refratado no espelho, o “eu” acha mais fácil quebrar o espelho, para matar o monstro, do que reconhecer e encarar que o monstro está dentro dela (como no Cisne Negro, em O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky). As tentativas de quebrar o espelho, para matar o monstro, são: “produzir a não existência” do/a “outro/a” (SANTOS, 2006)[1], ou seja, invisibilizar o alvo de seu preconceito, fechando portas, impedindo oportunidades, apagando sua imagem, desacreditando sua fala e sua imagem, desqualificando seu trabalho etc. Tudo isso feito de forma sutil e muito bem justificada. Para todos os efeitos, a bondade e o bom senso são mantidos, pois, sabemos, a “tolerância é a caridade intelectual do poderoso” (RAMANDAN, 2011)[2] ; aproveitar toda e qualquer (e até criar) situação para mostrar ao mundo o quanto o/a “outro/a” é malvado/a, maligno/a, perverso/a e indigno/a. Mas, o/a “outro/a” é duro/a, é resiliente, ele/ela resiste! E isso causa ainda mais revolta no “eu”, deixando-o/a ainda com mais sede de perversão – que para ele/ela não é perversão, é “justiça”; e seu monstro vai crescendo e ficando cada vez mais nutrido, forte e poderoso; e sua perversão, cada vez mais, vai deixando de ser perversão e, cada vez mais, vai se tornando justiça. Com o tempo, o “eu” aprende com quem fazer alianças, a quem bajular e como bajular, para ter aliados/as que deem às suas narrativas a credibilidade e a circulação necessárias para, assim, conferir às suas perversões o sentido de justiça. Pessoas muito certinhas, moralistas e frágeis são também inseguras e carentes de afeto (são, em geral, fofoqueiras, maledicentes, intriguentas e semeiam a discórdia), por isso, são mais propensas à perversão e à crueldade contra o/a “outro/a” (o erro, o desvio etc.), que é seu negativo. E o que é melhor: estão fora de qualquer suspeita!



[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política, para um novo senso comum. Porto: Afrontamentos, 2006.
[2] RAMANDAN, Tariq. On super-diversity. (Reflexions 2). New York: Sternberg Press, 2011.


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