A importância da politização do debate
Tânia Ferreira Rezende (taniaferreirarezende@gmail.com)
Laboratório de Políticas de Promoção da
Diversidade Linguística e Cultural
Obiah Grupo de Estudos Interculturais
Decoloniais da Linguagem
Faculdade de Letras/Universidade Federal de
Goiás
Quando tratamos de “fascismo” e de “antifascismo”,
de “racismo” e de “antirracismo” estamos lidando com política e com ideologias. Equivale a dizer que não estamos apontando indivíduos nem
ações individuais, embora tenhamos que tratar das condutas das pessoas para
entender as práticas raciais que caracterizam as práticas racistas no lugar de
onde falamos. Temos de falar de política. Sem entender politicamente os
meandros do racismo e do sexismo, nesse tempo-lugar em que nos encontramos e
como esse tempo-lugar foi inventado e vem sendo narrado para nós, não tem como
entendermos de que ‘fascismo’ estamos falando.
Estamos falando de um fascismo racista e
sexista, atualizado pela colonialidade globalizada que reconfigura as práticas
racistas e sexistas, mas que não começou ontem. Essas práticas vêm sendo
construídas, no Brasil, desde 1500 por uma tecnologia de racialização e sexismo
engendrada na Península Ibérica, no que nos diz respeito, com a “Reconquista”, e
na África, pela invasão e saqueio do Congo, no século VIII, conforme considera Lélia
Gonzalez, em “A categoria político-cultural de amefricanidade”.
A América Latina e, portanto, o Brasil, é uma
invenção do colonialismo, com a invasão e usurpação dos territórios dos povos
originários. Entretanto, sua construção, literalmente construção, da forma como
a conhecemos e a entendemos, ocorreu com a força de trabalho escravizada do
ameríndio e do africano. O ameríndio é a referência colonial ao povo habitante
do autoritariamente nomeado “Novo Mundo”, e africano é a referência colonial do
habitante do continente autoritariamente nomeado de África.
O povo africano foi sequestrado, traficado e
obrigado a trabalhar nas colônias do “Novo Mundo”. Foram em torno de 12 milhões
de pessoas sequestradas e comercializadas como mercadorias. Dessas, em torno de
2 milhões morreram durante a travessia atlântica. Nos termos de Mbembe, em “Sair
da grande noite” e em “Necropolítica”, os “sobreviventes”, embora vivessem, não
tiveram existência, ainda assim construíram diversas estratégias de
resistências e de lutas.
As mulheres e os homens ameríndios e africanos foram
subjugados ao trabalho escravizado, dia e noite, sem descanso, para a
construção da nação e o enriquecimento dos senhores e das senhoras, em todas as
regiões litorâneas do Brasil. O centro do Brasil, o Brasil Central ou Planalto
Central começa, efetivamente a ser explorado, somente no século XVIII, depois
de algumas mal sucedidas incursões, no século XVII. Nessa região, a atividade é
a preação de indígena para o trabalho nas lavouras do Nordeste e a exploração
das minas de ouro e outros metais e pedras preciosas.
Os homens são peças para o trabalho e são
guardiões das casas para a segurança dos senhores e senhoras, protegem dos perigos
das matas, isto é, dos “selvagens” e dos “ferozes africanos”, seus irmãos, e
protegem das feras. Alguns homens são escolhidos para a reprodução, são os “pai-José”
das senzalas. As mulheres também são peças para os mesmos trabalhos e são
máquinas de reprodução, não de vidas, não de filhos, mas de mais mão de obras
para as lavouras e as minas; são também máquinas de sustentos das crianças
brancas, são as amas de leite, as Bás. O corpo de uma mulher é uma empresa:
trabalha na lavoura ou na mina, sacia a “necessidade” sexual do senhor (é
estuprada pelo dono), emprenha do negro-reprodutor, querendo ou não (é
estuprada pelo irmão, pai, tio, não há genealogia) gera (fabrica) mão de obra, sustenta
a mão de obra e alimenta o senhorzinho (fabrica alimento).
Não há relação familiar, não há vínculo de
pertencimento, as memórias são cortadas, fragmentadas, apagadas (memoricídio),
ao mesmo tempo em que suas histórias vão sendo sufocadas pela língua opressora,
por meio de linguicídio e de epistemicídio. Não há tratamento afetivo, não há
afeto, não há amor. Há castigos, maus-tratos, ódios, revolta, indignação. Há,
por outro lado, resistência, resiliência, insurgência. Se mais da metade da população
brasileira atualmente é constituídas por pessoas negras, isto é, pessoas pretas
e pardas, descendentes dos africanos e dos indígenas, então, houve luta, enfrentamento,
essas pessoas sobreviveram. De alguma forma, nossos ancestrais saíram
vencedores de muitas lutas, por isso, estamos aqui.
Em meio a todo esse processo de violência e
opressão, em que as mulheres são estupradas pelos brancos e pelos negros, vendo/sentindo
seus filhos serem moedas e mercadorias, enquanto seu leite sustenta o filho
branco da sinhá, a mãe preta materna com leite e com o “pretuguês”, que para
Lélia Gonzalez é linguagem e é epistemologia, a infante nação brasileira. Forma-se
uma gramática neurótica, confusa, perdida, que não se encontra em sua história.
No álbum de família, a mãe da nação é branca, nobre e instruída pela escola
culta, europeia, cristã, mas na memória de infância, o colo do afeto, na
lembrança trazida pelo cheiro do leite materno, é da mãe preta instruída pelas
lembranças dos itans narrados pelos griôs da antiga casa.
Essa nação chega a sua adolescência com todas
as neuroses da adolescência, declarando respeito à mãe preta em público, por
remorso, mas no fundo, na clandestinidade, envenenando sua comida e desejando
sua morte para alívio da família. Ao mesmo tempo em que nega, ama a mãe branca
e quer matar o pai, sonhando com o amor da babá. É tanta confusão que mais parece
pesadelo. Nas práticas do dia a dia, na clandestinidade sociodiscursiva ou não,
todos os problemas que essas pessoas acumularam, envolvendo “poder”, qualquer
tipo de “poder”, elas desabafam no corpo abjetado, porque elas acreditam que
esse corpo é o culpado de tudo. No final das contas, o cristianismo, com a “culpa
da vítima”, que sintetiza a lógica da violência colonial, ainda está vencendo.
O fascismo tem uma gramática e essa gramática, tendo a
América Latina como lócus, inclui categorias racistas, sexistas (machistas e
misóginas), classistas. No caso do racismo, essas categorias operam de forma interseccionada,
fenômeno anunciado por Lélia Gonzalez, em “Racismo e sexismo na cultura
brasileira”, conceituado por Kimberlé Williams Crenshaw e discutido, no
contexto brasileiro, por Carla Akotirene, em “O que
é interseccionalidade?”.
Ora, se o fascismo tem uma gramática e se essa gramática é
racista, sexista, classista, então, é fundamental pensarmos em letramentos
antirracistas para promover a percepção dessa gramática. Por que essa proposta
foi diretamente para os letramentos antirracistas? Não é difícil entender que
uma gramática racista pressupõe uma gramática fascista, mas que o contrário não
é verdadeiro. Logo, letramentos antirracistas são também letramentos
antifascistas, ainda que letramentos antifascistas podem não incluir
letramentos antirracistas. Passaremos, de forma detalhada, com base na vida
cotidiana, às pistas de entendimento do racismo para a promoção do
antirracismo.