domingo, 7 de junho de 2020

LETRAMENTOS ANTIRRACISTAS


A importância da politização do debate

Tânia Ferreira Rezende (taniaferreirarezende@gmail.com)
Laboratório de Políticas de Promoção da Diversidade Linguística e Cultural
Obiah Grupo de Estudos Interculturais Decoloniais da Linguagem
Faculdade de Letras/Universidade Federal de Goiás


Quando tratamos de “fascismo” e de “antifascismo”, de “racismo” e de “antirracismo” estamos lidando com política e com ideologias. Equivale a dizer que não estamos apontando indivíduos nem ações individuais, embora tenhamos que tratar das condutas das pessoas para entender as práticas raciais que caracterizam as práticas racistas no lugar de onde falamos. Temos de falar de política. Sem entender politicamente os meandros do racismo e do sexismo, nesse tempo-lugar em que nos encontramos e como esse tempo-lugar foi inventado e vem sendo narrado para nós, não tem como entendermos de que ‘fascismo’ estamos falando.

Estamos falando de um fascismo racista e sexista, atualizado pela colonialidade globalizada que reconfigura as práticas racistas e sexistas, mas que não começou ontem. Essas práticas vêm sendo construídas, no Brasil, desde 1500 por uma tecnologia de racialização e sexismo engendrada na Península Ibérica, no que nos diz respeito, com a “Reconquista”, e na África, pela invasão e saqueio do Congo, no século VIII, conforme considera Lélia Gonzalez, em “A categoria político-cultural de amefricanidade”.  

A América Latina e, portanto, o Brasil, é uma invenção do colonialismo, com a invasão e usurpação dos territórios dos povos originários. Entretanto, sua construção, literalmente construção, da forma como a conhecemos e a entendemos, ocorreu com a força de trabalho escravizada do ameríndio e do africano. O ameríndio é a referência colonial ao povo habitante do autoritariamente nomeado “Novo Mundo”, e africano é a referência colonial do habitante do continente autoritariamente nomeado de África.

O povo africano foi sequestrado, traficado e obrigado a trabalhar nas colônias do “Novo Mundo”. Foram em torno de 12 milhões de pessoas sequestradas e comercializadas como mercadorias. Dessas, em torno de 2 milhões morreram durante a travessia atlântica. Nos termos de Mbembe, em “Sair da grande noite” e em “Necropolítica”, os “sobreviventes”, embora vivessem, não tiveram existência, ainda assim construíram diversas estratégias de resistências e de lutas.

As mulheres e os homens ameríndios e africanos foram subjugados ao trabalho escravizado, dia e noite, sem descanso, para a construção da nação e o enriquecimento dos senhores e das senhoras, em todas as regiões litorâneas do Brasil. O centro do Brasil, o Brasil Central ou Planalto Central começa, efetivamente a ser explorado, somente no século XVIII, depois de algumas mal sucedidas incursões, no século XVII. Nessa região, a atividade é a preação de indígena para o trabalho nas lavouras do Nordeste e a exploração das minas de ouro e outros metais e pedras preciosas.

Os homens são peças para o trabalho e são guardiões das casas para a segurança dos senhores e senhoras, protegem dos perigos das matas, isto é, dos “selvagens” e dos “ferozes africanos”, seus irmãos, e protegem das feras. Alguns homens são escolhidos para a reprodução, são os “pai-José” das senzalas. As mulheres também são peças para os mesmos trabalhos e são máquinas de reprodução, não de vidas, não de filhos, mas de mais mão de obras para as lavouras e as minas; são também máquinas de sustentos das crianças brancas, são as amas de leite, as Bás. O corpo de uma mulher é uma empresa: trabalha na lavoura ou na mina, sacia a “necessidade” sexual do senhor (é estuprada pelo dono), emprenha do negro-reprodutor, querendo ou não (é estuprada pelo irmão, pai, tio, não há genealogia) gera (fabrica) mão de obra, sustenta a mão de obra e alimenta o senhorzinho (fabrica alimento).  

Não há relação familiar, não há vínculo de pertencimento, as memórias são cortadas, fragmentadas, apagadas (memoricídio), ao mesmo tempo em que suas histórias vão sendo sufocadas pela língua opressora, por meio de linguicídio e de epistemicídio. Não há tratamento afetivo, não há afeto, não há amor. Há castigos, maus-tratos, ódios, revolta, indignação. Há, por outro lado, resistência, resiliência, insurgência. Se mais da metade da população brasileira atualmente é constituídas por pessoas negras, isto é, pessoas pretas e pardas, descendentes dos africanos e dos indígenas, então, houve luta, enfrentamento, essas pessoas sobreviveram. De alguma forma, nossos ancestrais saíram vencedores de muitas lutas, por isso, estamos aqui.

Em meio a todo esse processo de violência e opressão, em que as mulheres são estupradas pelos brancos e pelos negros, vendo/sentindo seus filhos serem moedas e mercadorias, enquanto seu leite sustenta o filho branco da sinhá, a mãe preta materna com leite e com o “pretuguês”, que para Lélia Gonzalez é linguagem e é epistemologia, a infante nação brasileira. Forma-se uma gramática neurótica, confusa, perdida, que não se encontra em sua história. No álbum de família, a mãe da nação é branca, nobre e instruída pela escola culta, europeia, cristã, mas na memória de infância, o colo do afeto, na lembrança trazida pelo cheiro do leite materno, é da mãe preta instruída pelas lembranças dos itans narrados pelos griôs da antiga casa.

Essa nação chega a sua adolescência com todas as neuroses da adolescência, declarando respeito à mãe preta em público, por remorso, mas no fundo, na clandestinidade, envenenando sua comida e desejando sua morte para alívio da família. Ao mesmo tempo em que nega, ama a mãe branca e quer matar o pai, sonhando com o amor da babá. É tanta confusão que mais parece pesadelo. Nas práticas do dia a dia, na clandestinidade sociodiscursiva ou não, todos os problemas que essas pessoas acumularam, envolvendo “poder”, qualquer tipo de “poder”, elas desabafam no corpo abjetado, porque elas acreditam que esse corpo é o culpado de tudo. No final das contas, o cristianismo, com a “culpa da vítima”, que sintetiza a lógica da violência colonial, ainda está vencendo.    

O fascismo tem uma gramática e essa gramática, tendo a América Latina como lócus, inclui categorias racistas, sexistas (machistas e misóginas), classistas. No caso do racismo, essas categorias operam de forma interseccionada, fenômeno anunciado por Lélia Gonzalez, em “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, conceituado por Kimberlé Williams Crenshaw e discutido, no contexto brasileiro, por Carla Akotirene, em “O que é interseccionalidade?”.   

Ora, se o fascismo tem uma gramática e se essa gramática é racista, sexista, classista, então, é fundamental pensarmos em letramentos antirracistas para promover a percepção dessa gramática. Por que essa proposta foi diretamente para os letramentos antirracistas? Não é difícil entender que uma gramática racista pressupõe uma gramática fascista, mas que o contrário não é verdadeiro. Logo, letramentos antirracistas são também letramentos antifascistas, ainda que letramentos antifascistas podem não incluir letramentos antirracistas. Passaremos, de forma detalhada, com base na vida cotidiana, às pistas de entendimento do racismo para a promoção do antirracismo.

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