segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Interseccionalidade: insegurança, autoritarismo e controle


Muitos acontecimentos chocantes marcaram os últimos meses, as últimas semanas e até o último dia de 2016. Por serem demasiadamente chocantes, acabam reduzidos a explicações simplistas, para acalmarem a curiosidade popular ou para permitirem o entendimento geral. Alguns desses acontecimentos me chamaram mais a atenção, não sei dizer o porquê, e fiquei pensando: o que eles teriam em comum? Aparentemente, nada. Aparentemente, tudo. A contradição da complexidade sempre revela a intersecção entre diferentes acontecimentos. Por isso, a ilusão da simplificação satisfaz tão apressadamente a ansiedade da busca de respostas.
Em um dos acontecimentos (não necessariamente ocorrido primeiro), um diretor de faculdade ocupada da UFG, como outras faculdades ocupadas, já com liminar de desocupação, adentra ao prédio, acompanhado por seguranças pessoais e exige a saída d@s estudantes, antes do prazo final previsto na liminar. @s estudantes não aceitam a imposição do diretor e exigem sua imediata retirada da faculdade. O diretor resiste, agride fisicamente @s estudantes e, por isso, é expulso do prédio. Inconformado, o diretor depreda o prédio, avariando-o*, coisa que @s estudantes, durante os dezoito dias de ocupação, nunca fizeram. O diretor (autoridade) age com autoritarismo, demonstra despreparo para lidar com crises, instabilidade e estresse. Ele, que deveria administrar a situação, foi o causador dos conflitos. Seu autoritarismo e desejo de controle, e seu total descontrole e desequilíbrio, ao não ser obedecido, mostram sua falta de preparo para lidar com conflitos e, principalmente, mostram sua falta de habilidade para lidar com seres humanos, sobretudo quando esses seres humanos não estão dispostos a lhe obedecer. Depois de tudo feito, o diretor inverte os fatos, culpabiliza @s estudantes, afinal de contas, para a opinião pública “eles não passam de baderneiros mesmo”. @s estudantes não têm espaço na mídia, como tem um diretor de faculdade da UFG, apoiado e defendido pela diretoria do sindicato d@s professor@s (vejam bem: defendido pela “diretoria”, não pelo sindicato nem pel@s professor@s). Assim, o diretor nem tem de enfrentar as consequências de seu “destempero” moral e ético. ELE é a vítima.
O outro acontecimento que selecionei (não necessariamente acontecido na sequência do anterior) é o caso de um homem que, por não aceitar o fim do casamento, mata a tiros a ex-esposa. Poderia ser mais uma história corriqueira de um homem de meia idade, casado com uma mulher vinte anos mais nova que ele, seu “troféu social”, sua “prenda emocional”. Uma mulher jovem, bonita, cheia de vida e, maltratada pelo marido. Poderia ser mais uma história corriqueira e banal. Mas ela não aceitou a regra sociocultural do “sou infeliz, mas tenho marido”, simplesmente, porque era daquelas mulheres que não precisam do “amparo” de um homem, ou seja, não é porque era jovem e bonita que tinha de ser “bela, recatada e do lar”, sustentada por homem. Muito menos era daquelas mulheres que dependem de “chancela social”**. Era uma mulher independente e determinada, que sabia o que queria da vida. Mulheres jovens e bonitas podem também ser inteligentes e bem sucedidas profissionalmente. Mulheres jovens e bonitas não são meros objetos de decoração, desprovidos de sentimentos e de capacidades intelectuais e cognitivas. Mas, isso tem um preço, e essa moça pagou seu preço, com a própria vida. Mulheres independentes têm de ser “disciplinadas”. Elas assustam, agridem, porque desestabilizam lugares, desafiam papéis. A insegurança do homem, diante dessa mulher, foi aflorada, sua autoridade foi desafiada e seu orgulho foi extremamente ferido: “se não é minha, não pode ser de mais ninguém”. Sim, porque ELE é dono! A insegurança aciona e mobiliza a posse, o controle e o autoritarismo. Essa mulher estava num ponto inerseccional perigoso e sofreu uma colisão. ELE a matou e fugiu. ELE também não quis enfrentar as consequências do que fez. ELE também não tem de enfrentar as consequências do que fez. A sociedade sempre teve uma justificativa ideológica histórica para desculpar os excessos dos “homens de bem”. Mas, agora, "foi mal". Parece que o mundo mudou. Talvez, não tenha desculpas. Talvez, ELE tenha de pagar pelo crime. Talvez, matar mulher não seja mais um capital cultural de prestígio, um bem de raiz, um legado de família, como sempre foi. Talvez!***
Por fim, selecionei o caso do filho que desobedece à autoridade do pai. O pai (e também a mãe) tem planos, desde que sabe que vai ser pai de meninO. Assim como também teria planos se soubesse que seria pai de meninA. A nomeação classificadora – meninO/meninA – com o gênero do bebê marcado, gramatical ou lexicalmente, a depender das regras da língua e das regras da sociedade e da cultura do povo que legisla sobre suas práticas sociolinguísticas, dá existência, situa a criança no mundo, dá-lhe um lugar social, mesmo antes de ela nascer. Por essa classificação, seu caminho na vida começa a ser traçado e cabe a ela ir seguindo. O pai é engenheiro, logo, seu filho deve ser engenheiro, ou médico ou dentista, tanto faz. A filha do “compadre X” (sócio, irmão da igreja, da maçonaria etc) é uma boa moça pra você se casar e ter filhos. O que não pode acontecer é um acidente de percurso, do tipo: meu filho virar gay?! ou querer ser professor, absurdo! Criado com tanto amor e carinho! Será!!! Alg@ns filh@s, assim como algumas mulheres e algu@ns estudantes, querem seguir seu caminho, querem ter vida própria, querem tomar suas próprias decisões, querem SER. Mas, para os pais e mães, o TER importa mais. O desejo de controle leva ao autoritarismo, à perda do controle e ao extremismo. A simplificação como busca de entendimento reduz os acontecimentos a motivos racionais e palpáveis. Entretanto, um acontecimento nunca se reduz a um só motivo. A divergência ideológica entre gerações, entre pais, mães, e filh@s, é histórica, é muito antiga e, por si só, não leva um pai, ou uma mãe, a matar um filho. Uma pessoa para matar outra, primeiro, mesmo tendo um forte motivo, como a autodefesa da vida, tem de estar armada. Por que aquele homem estava armado? Ele tinha porte de arma? Por quê? É a onda de ódio que assola o país, ok. Que ódio é esse, que numa discussão, que, segundo está informado pela imprensa local (temos de lembrar que a imprensa local, todas elas, nunca é, nem sequer minimamente, confiável), já era corriqueira, faz com que um pai mate seu próprio filho, seu único filho? (O mesmo se aplica à mãe, que matou recentemente seu filho, ou a Alexandre Nardoni e por aí vai). E por que ele estava armado? Por que, justamente nesse momento da discussão? ELE não aceita as escolhas do filho e, por isso, o mata. Mata o filho e se mata. Mata-se, porque o preço do pecado é a morte? Não! Mata-se, porque não pode enfrentar esse seu feito. A sociedade talvez até desse um jeito de desculpá-lo, como está dando. Talvez! Mas ele não teria seu próprio perdão. Matou-se para não enfrentar, afinal, nunca teve de enfrentar nada na vida, sempre mandou e foi obedecido. Dessa vez, teria de enfrentar a si mesmo, não teria como transferir a culpa para outros. Matou-se! (O duplo, Cisne negro, Clube da luta etc.).****
Há no autoritarismo e na necessidade ou desejo de controle uma pitada de insegurança. Pessoas arrogantes e autoritárias (mesmo aquelas disfarçadas de humildes e democráticas) parecem ser, no fundo, inseguras. Sabe aquelas pessoas delicadas, gentis, humildes, éticas, mas que, ao serem questionadas, perdem o controle, a compostura, descem do salto? Pois é! Há muitas, que se dizem isso, aquilo, mas não admitem ser questionadas, sequer minimamente. Há um problema aí, talvez seja insegurança, talvez seja capricho, coisa de gente mimada. Talvez!
A desestabilização da ordem constituída, desde 2013, no Brasil, principalmente, com os movimentos estudantis secundaristas, chegando aos movimentos nas universidades, mostrou o que é liderança e o que é gerenciamento nesse avançar de século XXI. Administrar quando tudo, ainda que aparentemente, vai bem, é fácil. Administrar crise é outra coisa e é aí que o líder se revela, ou não. Ser líder não é, nem de longe, ser autoritário. O líder não precisa ser autoritário. Isso vale para o ambiente escolar e para o ambiente familiar; para as relações pessoais, entre gêneros, homem/mulher, pai/filho, mãe/filh@, e para as relações profissionais, entre categorias, como diretor/professor/estudantes, professor/estudantes.
O que a crise 2013-2016 revelou é que as pessoas em suas relações pessoais, familiares e profissionais só sabem mandar e ser obedecidas. Fora desse modelo de relações, ninguém sabe como proceder. Mas, o mundo está em profunda transformação, os lugares e os papeis estão desestabilizados, tudo passa por uma profunda recomposição. As pessoas que se encontram nas zonas de intersecção, são os alvos das colisões, são as vítimas dos excessos, sem dúvida. Eu não vou, de jeito nenhum entrar no jogo da hipocrisia sócio-discursiva de dizer que tod@s são vítimas e que tod@s sofrem. NÂO MESMO! As informações e as formações estão aí há décadas. Os grupos e os indivíduos que promovem as colisões são os mais bem formados e informados e são aqueles que não querem perder, nem minimamente, os privilégios, ainda que privilégios simbólicos. A sociedade que legitima e que autoriza essas ações é responsável por elas. As ações, individuais ou coletivas, e os discursos-ambientes de resistência a mudanças que visam promover justiças sociais é responsável por cada colisão e por cada morte resultante dessas colisões.

*Informações baseadas em vídeos que circularam nas redes sociais e em depoimentos d@s estudantes.
**Conceito desenvolvido em Rezende (no prelo), com base em Dominique Maingueneau.
***Informações obtidas nas mídias sociais de circulação local e nacional.
****Informações obtidas nas mídias sociais de circulação local e nacional.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário