segunda-feira, 5 de abril de 2010

DIREITOS HUMANOS E IDENTIDADE LINGUÍSTICA EM GOIÁS

Tânia Ferreira Rezende (FL/UFG)

Nesta oportunidade, retomo algumas questões levantadas no artigo “Direito Lingüístico: um Direito Humano fundamental”, publicado no primeiro número desta Revista, a saber: (1) A escola deve corrigir a fala dos alunos? (2) Os sotaques devem ser corrigidos? (3) Com qual objetivo?
O modo de falar de um grupo – seu sotaque e a estrutura de seu discurso – constitui a sua identidade lingüística, tão importante quanto sua identidade étnica, social e cultural. A correção desse modo de falar pode-se dar em diferentes perspectivas, tais como a correção das estruturas sintáticas, como as concordâncias nominal e verbal, ou a correção de características sonoras típicas de uma dada comunidade, que compõem o seu sotaque. No presente artigo, para tentar buscar possíveis respostas às questões levantadas, vou-me restringir à análise de um traço sonoro específico de alguns falares do Brasil, considerado marca genuína do sotaque goiano: o R “caipira”, conforme definição de Amadeu Amaral (1920).
Do ponto de vista do estudo da linguagem (fonológico , especificamente), o “R caipira” , da forma que ocorre em: caRta, ciRco, etc., é apenas uma das alternativas de uso do som r, não só no português brasileiro (PB), mas também em outras línguas, como o inglês, por exemplo. De uma perspectiva social, o “R caipira” é uma marca estigmatizada, atribuída à fala do “caipira”, que é, segundo Amaral (1982), o roceiro, o matuto sem instrução. Estas são avaliações sociais incorporadas ao “R caipira”, que é, cientificamente, apenas um dos vários sons que tipificam o PB.
A estigmatização do “R caipira” vem de muito longe. Amadeu Amaral, em seu clássico O dialeto caipira, de 1920, descreve o dialeto do caipira paulista, que é, historicamente, o mameluco – miscigenação de branco (português colonizador) e índia Tupi, mais precisamente, o Tupinambá da Costa paulista. Este traço, afirma o autor, inicialmente restrito à fala do caipira, o roceiro ignorante e atrasado, se espalhou por todo o estado de São Paulo e passou a ser percebido até mesmo na boca de muita gente boa, a pequena minoria culta da capital.
Se pensarmos na situação social, cultural e lingüística, dos períodos colonial e imperial do Brasil, vamos constatar a existência de três pólos irradiadores: São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, respectivamente, a área econômica, caracterizada pelas aventuras e coragem dos desbravadores dos sertões brasileiros, a capital e a sede da Corte, a partir de 1808. Desta maneira, Bahia e Rio de Janeiro se unem na padronização de um comportamento sócio-cultural e lingüístico, enquanto São Paulo, ninho da mestiçagem e nação de bastardos, se distingue dos centros de prestígio da Colônia e do Império (Salvador e Rio de Janeiro), devido aos modos rudes e ásperos de ser e de falar, marcados, principalmente, pela presença do “R mameluco”, que inexistia na fala dos nobres administradores soteropolitantos e cariocas, de dentro e de fora da Corte. Isso explica porque o R paulista é estigmatizado e porque o “S chiado” do carioca, como em meiSmo, máScara, embora sendo uma marca explícita, não é: o R é um traço da fala do mameluco e o S é um traço da fala dos nobres, dos descendentes, legítimos ou não, da família real/imperial luso-brasileira. Uma pessoa que fale com o “S chiado” se aproxima do colonizador (marca de prestígio), ao passo que uma pessoa que fale com o “R caipira” se aproxima dos índios brasileiros (marca de estigma). É importante destacar que o termo carioca designava, historicamente, o brasileiro do Rio de Janeiro (também mestiço e bastardo), em contraposição à realeza. Portanto, nem tudo que “Shia” é real.
A difusão do referido som pelo Brasil está associada às bandeiras paulistas, pelas trilhas do ouro, no denominado Brasil caipira, de acordo com Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 2006). Segundo a Professora Marta Scherre (UnB/CNPq), em comunicação pessoal, o espalhamento do “R caipira”, pelo interior brasileiro, pode ser decorrente da construção da estrada de ferro, no Brasil, pelos ingleses, cuja língua possui esse som. A Professora Maria do Socorro Pimentel da Silva, coordenadora do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena e da Licenciatura Intercultural da Universidade Federal de Goiás, também em comunicação pessoal, defende que o “R caipira” é uma inovação do sistema sonoro português, isto é, trata-se de um som que não existia em Portugal e que emergiu no Brasil, durante o contato da língua portuguesa (LP) com as línguas indígenas brasileiras. Para a Professora Maria Antonieta Amarante de Mendonça Cohen (UFMG/CNPq), em comunicação oral, no V Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística (Belo Horizonte, 2007), do ponto de vista histórico, o “R caipira” pode ser uma inovação brasileira, encaixada no fenômeno da troca do “L lateral velarizado” por R, como em caRçado por caLçado, que acontece na LP desde o início de sua história (primeiros registros escritos da língua) e pode ser encontrado até mesmo na língua latina.
Qualquer que seja a hipótese confirmada pelas pesquisas em andamento, é inegável que o “R caipira” está presente no falar goiano, como uma (ou a principal) marca de sua identidade lingüística e, como tal, deve ser encarado como motivo de orgulho do povo goiano e respeitado pelos forasteiros que para cá vêm em busca de seu sustento.
Desta forma, está bastante claro que o sotaque – identidade lingüística – de um grupo não deve ser corrigido, em hipótese alguma, pois corrigi-lo constitui uma forma de violência simbólica e de desrespeito aos Direitos Lingüísticos, ferindo, portanto, um dos Direitos Humanos fundamentais. Diante disso, não há objetivo, seja educacional ou não, que justifique a prática de correção do “R caipira”, seja qual for o falante que o expresse, e menos ainda quando este falante se encontra em seu território. Corrigir ou discriminar o “R caipira” é intolerância cultural equivalente às intolerâncias racial, religiosa, de orientação sexual etc.


REFERÊNCIAS:

AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Casa Editora “O livro”, 1920.
ENCONTRO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGÜÍSTICA, 4, (2007), Belo Horizonte-MG.
JOTA, Z. S. (1981). Dicionário de Lingüística. Rio de Janeiro: Presença.
RIBEIRO, D. (2006). O povo brasileiro. São Paulo-SP: Cia de Bolso.




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