Aconteceu em Brasília a última audiência pública, regional Centro-Oeste, sobre a BNCC, no dia 11 de setembro de 2017.
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A geopolítica do poder ilegítimo configurada no cenário
Eu e outras colegas da UFG estivemos presentes na audiência pública de Brasília e fizemos uso da palavra, na exaustão do final da tarde. Este texto, entretanto, reflete somente a minha percepção do que foi a sessão do CNE nesse dia. Começo pelo choque que levei ao ver a expressão do geopoder falo-étnico-racial refletida no cenário (a fotografia mostra um pouco dele): ao centro, a mesa diretiva, composta pela Comissão de elaboração da BNCC e o Presidente do Conselho Nacional de Educação, todos homens e brancos. Nas bordas, encontram-se os/as demais conselheiros/as do CNE; dentre outros tantos homens brancos, estão, ironicamente, as pessoas que se situam às margens da sociedade, não sendo, necessariamente, todas elas pessoas subalternizadas: um indígena, um negro e algumas poucas mulheres. Seguindo as pistas de Mignolo (2003), o espaço, historicamente marcado, ocupado por diferentes corpos-políticos, também historicamente marcados por diferentes índices, revela a constituição das relações de poder engendradas no processo de elaboração, de discussão e de aprovação da BNCC. Durante a apresentação dos/as conselheiros/as, o conselheiro Gersen Luciano, indígena Baniwa, único conselheiro indígena no CNE, não foi citado, foi esquecido! Somente ele foi esquecido pelo Sr. Presidente. Este também um indicador das relações de poder expressas no/pelo cenário.
Gênero, sexo, e sexualidade: o pavor da sociedade contemporânea
A temática sobre gênero, sexo e sexualidade monopolizou e polarizou as falas: de um lado, profissionais de diferentes áreas do conhecimento, que concebem o corpo e a subjetividade do ser humano cultural e politicamente, defenderam a manutenção da temática na BNCC, dada a sua importância para a educação escolar, visando à construção de relações sociais e interpessoais mais saudáveis; de outro lado, profissionais das áreas da saúde e da educação, concebendo o corpo como um organismo fisica e biologicamente constituído a partir de informações genéticas, defenderam, "em nome da família tradicional brasileira", a retirada sumária da temática da BNCC, para a preservação da saúde mental das crianças, pois "nossas escolas não são laboratórios e nossas crianças não são cobaias". Vejam nessas falas, sempre, o emprego ideológico do possessivo, como um indicador de dominação do ambiente, com tudo o que há nele, inclusive das pessoas (Essa problemática está discutida em outro texto, neste mesmo Blog. Acessível em: https://obiahpodermagicodalinguagem.blogspot.com.br/2017/05/decolonizacao-da-percepcao.html). Os argumentos dos/as defensores/as da manutenção da temática são ancorados nos Direitos Humanos e o direito da pessoa sobre si e seu corpo; os argumentos dos/as contrários/as à manutenção é a ciência positivista, moderna, ocidental, colonial euro-cristã branco-falo-cêntrica (Freitas, 2016), além da tonalidade discursiva marcada pelo terrorismo. Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 130) afirma que a "aversão que à biologia que as ciências sociais hoje manifestam é, segundo Wilson, irracional e tem, quando muito, uma explicação sociológica: os cientistas sociais querem manter a sua independência em parte devido à extrema complexidade do tema da coevolução genético-cultural, e em parte por medo que se abuse da biologia para sustentar ideologias racistas (1998b: 145)". Não se trata de defender a aversão à biologia. O campo de conhecimento não é o responsável pelos abusos, mas de o fato é que ainda nem superamos o cientificismo racista, apesar de que o racismo científico tem sido evitado. Agora vivemos o fortalecimento do sexismo científico e do cientificismo sexista. Esse, definitivamente, não é o papel da ciência, nem da biologia nem de nenhuma outra ciência.
Política Linguística
A BNCC propõe a Área de Linguagem, composta do eixo Língua Portuguesa, de Educação Literária e de Língua Inglesa. A linguagem é concebida como atividade
humana, que ocorre em forma de “ação” sobre o mundo (transformação da natureza:
eixo da produção) e sobre as pessoas (eixo da comunicação). A área de
conhecimento “Linguagens”, na BNCC, é formada pelos seguintes componentes
curriculares: Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e, no Ensino Fundamental
– Anos Finais há a inserção da Língua Inglesa. A literatura é só mais um eixo
em meio aos outros, assumindo um lugar ainda mais marginal do que o que lhe
concede os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para a segunda fase do
Ensino Fundamental, de 1998. O eixo Língua Portuguesa é formado por uma parte voltada para as competências e outra parte constituída pelas “unidades
temáticas, objetos de conhecimento e habilidades”. Há avanço, pela proposta de um frame de interpretação semiótica do mundo pela linguagem.
Mas, na segunda parte, é perceptível a confusão entre Base
Nacional e Currículo mínimo (a Comissão insiste em dizer que a Base não é e não pretende ser currículo), com indicação de conteúdos por idade/série. Há
confusão e conflito entre as noções de “alfabetização” e “ensino de leitura e
de escrita”, e a noção de letramento. Parece haver mesmo resistência em assumir
a concepção de letramento como prática social e não como técnica e habilidade
de leitura e interpretação de textos. O ensino da Língua Inglesa está indicado a partir dos anos finais do
ensino fundamental, como opção única de ensino de outra língua que não o idioma
oficial do Brasil. A língua inglesa é concebida como língua franca, e seu
ensino está situado na perspectiva da educação linguística intercultural, com o
objetivo de “ampliar horizontes de comunicação e de intercâmbio cultural,
científico e acadêmico”, bem como “abrir novos percursos de acesso, construção
de conhecimentos e participação social” (BNCC, p. 199). A crítica à BNCC, no que concerne à
educação linguística intercultural em língua inglesa, língua franca – língua de
comunicação intercultural – aponta uma contradição entre os objetivos da BNCC,
que visam à construção de uma educação brasileira pautada na “formação humana
integral” e à “construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (p.
7 e 19); e o propósito da educação infantil de trabalhar a percepção da
criança, seus saberes e conhecimentos, considerando, entre outros, os campos de
experiência como “o eu, o outro e o nós” (p. 36); mas fecha o conhecimento no
ensino de Língua Portuguesa até o fim da primeira fase do ensino fundamental,
ignorando as pessoas que se comunicam por meio de outras línguas, como o
espanhol, o francês, o italiano, o inglês, o alemão, o japonês, as línguas dos
ciganos, as línguas dos imigrantes, as línguas indígenas, e a Libras. Exemplo
disso é o uso do espanhol nas regiões de fronteira do território brasileiro e o
uso efetivo cotidiano das línguas de imigração nas antigas colônias
estrangeiras dentro do Brasil, fatos ignorados pela BNCC, em prol do ensino
exclusivo do português como língua materna e do inglês como língua de
comunicação internacional, com a possibilidade do espanhol como uma segunda
língua estrangeira, além do inglês, se for desejo da escola. Sobre isso, apesar
de o território brasileiro fazer fronteira com países que, em sua maioria,
possuem a língua espanhola como forma de expressão, comunicação e interação,
além dos acordos com países hispânicos (o Mercosul), somente a língua inglesa é
contemplada na BNCC, fortalecendo o imperialismo do inglês no mundo, ao mesmo tempo em que contribui com a subalternização das demais línguas. A BNCC cria uma imagem ideal de aluno,
que é preconceituosa e excludente, visto que não menciona a existência da
Língua de Sinais, nem discute a complexidade da pluralidade das línguas
indígenas; apesar de, na seção sobre o estudo da língua inglesa sobre
interculturalidade e letramento (p. 199), serem propostos cinco eixos
organizadores para trabalhar este componente linguístico: oralidade, leitura,
escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais, dimensão intercultural. Com
base nesses eixos, busca-se o desenvolvimento de um total de seis competências
(p. 202) que visam à interculturalidade, à criticidade, ao uso de recursos
computacionais e midiáticos (novas tecnologias de informação e comunicação),
práticas de letramento, inserção num mundo globalizado, formação identitária,
reconhecimento e respeito às diferenças linguísticas e socioculturais e contato
com diferentes manifestações artístico-culturais. Contudo, a interculturalidade
não se concretiza no documento, já que há a escolha unilateral da língua
inglesa para ser ensinada nas escolas. Fidel
Tubino (s/d) distingue “interculturalidade funcional” de “interculturalidade
crítica”. A noção de interculturalidade que ancora o ensino de língua inglesa,
na BNCC, é a “interculturalidade funcional”. Nesse sentido, no que diz respeito
ao ensino de línguas, em geral, e de língua inglesa, em particular, voltamos
(ou será que nunca saímos?) ao Emílio, de Rousseau, em que pobres e ricos são
educados de maneiras distintas para finalidades distintas. A política linguística que sustenta a BNCC é discriminatória e excludente, tornando a BNCC totalmente ilegal.
BRASIL/MEC. BNCC. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2017.
FREITAS,
H. O arco e a arkhé – ensaios sobre
literatura e cultura. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2016.
MIGNOLO, W. D. Hitórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar.
(Trad. Solange Ribeiro de Oliveira). Belo Horizonte-MG: UFMG, 2003.
SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova
cultura política. Porto: Edições Afrontamento, 2006.
TUBINO, Fidel. Del
interculturalismo funcional al interculturalismo crítico. Disponível em: http://red.pucp.edu.pe/ridei/files/2011/08/1110.pdf
Acesso em: 20 set. 2017.