quarta-feira, 1 de julho de 2009

EU NÃO SEI PORTUGUÊS


Tania Rezende

Os enunciados “eu não sei português” e “eu não gosto de português” são muito comuns entre os falantes de português no Brasil. Dependendo do contexto, esses enunciados podem se referir ao idioma oficial do Brasil ou à disciplina Língua Portuguesa. Os dois casos merecem atenção, porque são preocupantes.
Neste texto, trato apenas do português como língua oficial do Brasil.
Em se tratando da língua oficial da nação brasileira, é preocupante porque como é que um falante nativo de uma língua pode não saber esta língua ou não gostar dela? Afirmações desse tipo traduzem o sentimento do falante em relação à sua língua nativa, uma autoestima rebaixada com respeito ao seu uso linguístico e reflete o conflito pretérito entre a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa – língua de cultura, de colonização, língua imposta – e as línguas nacionais – línguas gerais, línguas indígenas, línguas africanas, línguas imigrantes. Esse sentimento foi sendo, historicamente, acentuado pela distância entre a norma culta e as normas populares de uso da língua oficial, e pela falta de identificação linguística e sociocultural entre a massa falante de português brasileiro, em suas inúmeras variedades regionais, sociais e étnicas, dentre outras, e a norma padrão da língua portuguesa - única, homogênea, etnocêntrica, absolutista e obsoleta.
Soma-se a tais enunciados as afirmações “o brasileiro tem medo de português” e “o brasileiro não sabe nem sua língua”. Uma imagem surge do ‘brasileiro’ e um valor social, ideológico lhe é atribuído: aquele que não sabe sua língua materna ou nativa. Pode-se, então, entrever que, no uso social, a língua portuguesa é tomada como instrumento de dominação e exclusão; de constrangimento e humilhação; ela silencia, assusta, amedronta. No universo dos signos, o uso que o brasileiro faz de sua língua assume uma dimensão ideológica, com um valor semiótico, sendo, por isso, colocada sob a mesma definição geral[1] de língua portuguesa e, muitas vezes, português brasileiro ou português do Brasil.
Podemos extrair das afirmações e sentimentos listados até aqui algumas abstrações, para as quais levantamos alguns questionamentos:
· O brasileiro é falante nativo de português, portanto esta é sua língua materna ou nativa: Qual brasileiro? De onde? Falando como, qual variedade? Por quê? Para quê? Em quais circunstâncias?
· Qual português? Falado por quem? Onde? Enfim, que português é falado por quem?
O enunciado “eu não sei português” não é uma constatação ou uma conclusão diante de um fato. É um sentimento e uma atitude de toda uma coletividade em relação a uma prática sociocultural, isto é, ao uso da língua de dominação, decorrente das condições de uso dessa língua. Reflete ainda um sentimento de inferioridade, decorrente de atitudes inferiorizantes, e de não identificação linguística. A língua portuguesa no Brasil, assim, se ergue como barreira social e como o instrumento, por excelência, de exclusão social. Isso só é possível porque o sentimento do falante em relação ao uso do português no Brasil remete a um tempo-lugar, incrustado no imaginário dos brasileiros. É a lembrança de um passado presente, de uma época-tempo-lugar-situações, referentes à formação socio-histórica das variedades linguísticas do português brasileiro, através de processos prenhes de dor, sofrimentos e perdas, rotulados pelos estudiosos da língua simplesmente como degeneração da língua portuguesa ou, de forma mais acadêmica e científica, portanto, oficial, como crioulização da língua portuguesa.
A atitude do brasileiro em relação à sua língua nativa pode ser descrita como de amor e ódio, desejo e rejeição, medo e busca, resistência e luta. A língua que aprisiona e oprime é, ao mesmo tempo, o passaporte para a liberdade e o instrumento de empoderamento social.
No próximo texto, será abordado o processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa na escola.


[1] Conceitos de BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1995, pp. 31-8.

2 comentários:

  1. Olá Tânia
    Me parece que o profissional de Letras tem um papel importante em combater as atitudes e posturas que você menciona com tanta clareza em seu artigo. No entanto, algo me preocupa: é que encontramos entre nosso alunos - futuros professores de LP - atitudes não muito diferentes das mencionadas em seu ensaio. Recentemente, ouvi expressões assim de duas alunas que já passaram da metade do curso de Letras. Elas já foram expostas às teorias sociolinguísticas, mas ou acham as teorias estudadas em Letras muito distantes da realidade da sala de aula ou consideram que as discussões de disciplinas como Análise do Discurso, Sociolinguística, Linguística (Português) Histórica não são propriamente português. Fico me perguntando e te proponho este questionamento:qual é o papel do professor do curso de Letras diante desse quadro? Como promover a mudança entre aqueles - nossos alunos - que são os únicos que poderão provocar mudanças de tais atitudes nas cabeças de crianças e adolescentes - um fio de esperança de outras posturas em relação às questões de língua? Parabéns por essa contribuição. O enfoque da baixa auto-estima linguística me parece ser pouco explorado nas discussões sobre o tema. Newton

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  2. Newton, depois de muito refletir, estou aqui para pensarmos juntos essas questões sobre "mudança de postura". A única saída que vislumbro nesse momento é um trabalho de descolonização do (futuro)profissional de Letras, em todos os aspectos, para que este seja um multiplicador de nossas ideias. O desafio que se coloca à nossa frente é imenso e, por vezes, desanimador. Todavia, a única saída que temos é enfrentar o desafio, da melhor forma possível.
    A cada dia se multiplicam os defensores do ensino canônico vigente, e é natural que nossos alunos de graduação, ainda em processo de formação acadêmica e pedagógica, fiquem confusos. Nosso trabalho é como o trabalho das formigas, e, assim como elas, alcansaremos nossos objetivos.

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